Vinte anos de CBN – lembranças do ‘Rádio nervoso’

A fome dos jovens em viver intensamente o presente faz com que eles não se deem conta da importância futura de certos acontecimentos que presenciam, e que deles às vezes até fazem parte.

Eu tinha 23 anos no dia primeiro de outubro de 1991 e, bem de acordo com a idade, não percebi que era testemunha do nascimento de uma revolução no radiojornalismo brasileiro, e porque não dizer no próprio rádio nacional?

Com pouco tempo de profissão, eu era um dos repórteres mais novos do Sistema Globo de Rádio no Rio, cuja locomotiva à época era a Rádio Globo. Quando a CBN entrou no ar naquele dia, a redação se dividiu entre os que achavam maluquice uma rádio que só transmitiria notícias e os que, contrariados – mas não sem razão -, viam naquilo tudo apenas acúmulo de trabalho.

Não lembro se aderi a alguma dessas correntes, mas tenho certeza de que não possuía a menor dimensão do que aquilo significaria para a minha profissão, e para mim como profissional, em particular.

Pedi demissão da empresa cerca de um ano depois e retornei em 1995 para viver o melhor período de minha vida profissional. Aprendi a ser repórter – e a ser repórter de rádio – fazendo, diariamente, o que chamávamos de ‘rádio nervoso’, sob a batuta de algumas das pessoas que mais entendem do veículo no país, infelizmente há muitos anos longe da CBN.

‘Rádio nervoso’, na época, traduzia-se em trabalho apaixonado de cavucar notícia e ‘brigar’ – muitas vezes até com os colegas de trabalho – para entrar no ar e cumprir o sagrado dever de informar.

O tal ‘rádio nervoso’ era ao vivo, sujeito a erros e vexames, mas geralmente compensado com a sensação/certeza de que havíamos dando um show de jornalismo no ar, e depois disso os jornais e a TV’s que se virassem para correr atrás e recuperar o prejuízo.

O ‘rádio nervoso’não apenas era feito ao vivo, mas era feito do local onde os fatos aconteciam, e não do interior das gélidas e silenciosas redações de hoje em dia, onde olhos medrosos acompanham sem piscar – e apurar e confirmar e questionar e duvidar – o que as agências de notícias publicam, prática que está quase incorporada aos manuais de redação não só das rádios, mas também de muitas TV’s.

O ‘rádio nervoso’ era transmitido por gente que sabia (e tinha coragem) de mudar um noticiário inteiro estando ele já sendo transmitido; que não se prendia ao texto; que fazia do improviso ao microfone a forma natural de se comunicar com o ouvinte.

Não, o ‘rádio nervoso’não era feito por jornalistas com pavor de notícia de última hora, muito menos por quem – com todo respeito ao talento que possa ter escrevendo para jornais e revistas – não consegue intimidade com o microfone para chamá-lo de você.

Foi trabalhando assim, ‘nervoso’, que participei de coberturas memoráveis, tais como o leilão da Vale e o julgamento da dupla Guilherme de Pádua e Paula Thomáz.

Não sendo submetidos às leis do ‘terrorismo como método de gestão’, pelo menos no Rio trabalhávamos com seriedade e cobrança dura das chefias, mas igualmente com alegria e descontração, o que não raro era usado para consertar nossos próprios erros.

Foi o que aconteceu quando, cobrindo manifestação no centro da cidade, encerrei meu boletim informando que os manifestantes iram fechar a rua, mas errei feio no slogan da emissora, o lendário ‘CBN, a rádio que toca notícia’, acabando por dizer – ao vivo, é claro – a rádio que toca na rua. No estúdio, Marco Aurélio, meu modelo de âncora, não deixou a bola cair: sim, André Giusti, toca na rua, no carro, no trabalho, em todo o lugar a CBN toca.

Até hoje, aquela CBN da qual fiz parte, toca no meu coração.

Inferno e paraíso

Quando cheguei a Brasília treze anos atrás, vindo do Rio, era normal que eu confrontasse a qualidade de vida nas duas cidades. Nesses embates, conheci diversos exemplos de uma espécie arrogante que habita a capital do país.  Principalmente no que dizia respeito à criminalidade, havia uma necessidade desse tipo de pessoa em afirmar que o Rio era o inferno e Brasília o paraíso.

Carioca convicto e vaidoso de minha cidade – o que continuo sendo e serei sempre – não tinha mesmo com defendê-la. O Rio começava a viver seu período mais crítico em termos de segurança pública, coincidente(?) com o primeiro ano do reinado do casal Garotinho. Brasília tinha lá seus problemas à época, mas nada que nos desse a sensação de que sair à rua era estar com a vida por um fio.

Mais de um década depois, tendo adotado Brasília como casa e cidade do meu bem querer até a morte, percebo que, enquanto minha terra natal reage ao banditismo, a que é minha por adoção assiste impávida à escalada do medo.

Na semana passada, um grupo fez um arrastão em um dos restaurantes mais sofisticados da Asa Norte, uma das chamadas área nobre de Brasília. Lá se foram relógios, carteiras, joias e cartões em meio ao “saboreio” de vinhos caros e pratos da alta cozinha. Fosse um caso assim – que está se tornando frequente na cidade – noticiado dez anos atrás, aquele tipo de brasiliense que citei no início nem se daria ao trabalho de saber onde ocorrera. Diria prontamente: só pode ser no Rio.

A criminalidade que hoje interrompe o jantar de uma elite outrora tranquila com sua segurança, é um pavio acesso já há alguns anos na periferia da cidade desplugada da realidade do país. Como ninguém apagou antes, o fogo está chegando bem perto da pólvora.

O arrastão nos restaurantes talvez seja o exemplo mais emblemático, mas os sequestros-relâmpagos e o tráfico/consumo de crack são os mais assustadores. Quanto a este, aliás, estão agora tentando improvisar políticas públicas de combate e prevenção, pois a droga começou a devastar as famílias de classe média – não sem aviso, aliás, pois há tempos ela faz o mesmo com a população de rua.

Mesmo passível de críticas e necessitando de ajustes, o combate à criminalidade no Rio surte efeitos. A sensação de segurança do carioca pode não ter chegado a dez, mas pelo menos saiu do Zero. Na contramão, cresce nos últimos anos o medo do brasiliense de, por exemplo, parar à noite nos estacionamentos das superquadras e ser levado por dois ou três drogados a “passear” pelos caixas eletrônicos.

No caso do Rio, o estado finalmente entendeu que a situação não deveria piorar ainda mais. Em Brasília, a PM mais bem paga do Brasil pouco é vista pela população, permanecendo numa escala de folga incompreensível para o contribuinte e, em número considerável, fazendo segurança de gabinetes.

É de se perguntar então às autoridades e também ao tipo de brasiliense supracitado: o inferno reagiu. E o paraíso, nada?

Brasília em setembro 3

No fim da tarde

no cruzamento de avenidas aflitas

além da fumaça do diesel

acima da acidez do chorume

resistia o cheiro novo

da primavera anunciada.

Crianças de hoje, a má educação como regra

Todas as vezes que em pequeno ia a casa de parentes ou amigos da família, era obrigado a cumprimentar um por um quando chegasse, em especial os donos da casa. Caso contrário, experimentava a aplicação dos métodos ortodoxos de educação, dos quais, diga-se de passagem, não guardo qualquer trauma.

Cresci, virei pai e reproduzo em meu modo de educar boa parte da educação que recebi na infância, como por exemplo o ritual dos cumprimentos. Por isso, já fui e ainda sou olhado de soslaio e com estranheza por muita gente.

Muitos vão além das expressões de estranhamento e me criticam com frases feitas do tipo “ah, é criança, deixa ela, não tem importância”, marcas características do discurso que adota como princípio a leniência, a permissividade, a condescendência irrestrita para com os pequenos.

Confesso que por mais encantadora que seja a criança, para mim perde toda a graça – e me causa mesmo antipatia – se ela chega a minha casa e, sem sequer me olhar na cara, some corredor adentro até parar no território reservado dos quartos, onde, não raro, sua curiosidade a leva aos armários e gavetas. “Ah, ela é tímida”, já ouvi várias vezes como justificativa, um remendo cínico para o áspero cobertor da má educação, da falta de modos. A desculpa geralmente escapa da boca de quem, sem querer repetir o modelo repressivo dos pais, nunca acertou a mão no limite aos filhos.

Acho que está claro, mas não custa confirmar: não falo da educação chamada de etiqueta, esse instrumento fútil tão usado para se praticar a falsidade e a hipocrisia. Falo de educação como respeito às pessoas em geral, todas em pé de igualdade, independentemente daqueles conhecidos fatores que provocam a imbecilidade da discriminação.

Entrar na casa dos outros sem cumprimentar – e também em outras situações não pedir licença ou desculpa – não terá, num primeiro momento, consequência maior do que o certificado público de que os pais estão falhando em algum ponto. Mas como a educação é amiga íntima da gentileza, é de se esperar que no futuro será cada vez mais raro quem, por exemplo, ceda o lugar no metrô a um idoso ou a vez na fila a uma mulher grávida.

Onze do Nove

P/ Alexandre Carolli, que estava a meu lado naquele dia.

 

Quem acordou naquela manhã e foi trabalhar normalmente não poderia imaginar que se tratava do dia de inauguração da chamada Nova Ordem Mundial.

E continuei sem me atinar para isso mesmo quando o segundo avião atingiu uma das torres. Eu era coordenador de jornalismo da Rádio CBN no Rio e estava em uma reunião de pauta, quando os jornalistas decidem o que será noticiado ao longo do dia.

Meu primeiro trabalho foi convencer aos outros reponsáveis pela rede CBN que a progranação normal deveria ser imediatamente interrompida para que a cobertura fosse toda dedicada ao que acontecia em Nova York, mesmo que se tratasse apenas de um improvável acidente aéreo.

O resto daquela terça-feira passou como se estivéssemos correndo em um túnel escuro, barulhento, enfumaçado, no qual não havia como parar de correr, voltar, caminhar mais devagar. A urgência da notícia nos fez ir, de forma quase irrefletida, até à noite sem comer, movidos a café, esquecidos de nós mesmos e entregues àquilo que à época era nossa paixão: informar.

Já desconfiado de que dera minha contribuição para a documentação da história mundial, voltei para casa bem tarde, com a sensação amarga de que o mundo, a humanidade e a possibilidade do amor estavam por um fio. Provavelmente foi a mesma sensação que tiveram os da geração anterior, que viram a Alemanha invadir a Polônia.

Hoje, sacramentado que existe há uma década um novo ordenamento no planeta, minha angústia, passado esse tempo, é um tanto diferente: assusta muito mais por perceber que esses dez anos passaram quase tão rápido quanto as duas torres foram ao chão. 

 

A primeira noite de um homem

Agora ele dormia como dormiriam os sinos de bronze nos campanários das igrejas nas madrugadas quietas das cidades pequenas.

O dia intenso cobrara seu preço.

Às quatro da manhã fora acordado pelo interurbano da mulher. Ele precisava voltar imediatamente. A bolsa d’água arrebentara e ele seria pai pela primeira vez em poucas horas, ainda naquele dia, antes do almoço.

Mas como, se a médica garantira que a menina viria nos meados de setembro, e agosto ainda se despedia dos calendários?

Sem resposta, deu-se conta outra vez de si apenas quando já estava no balcão da companhia aérea, tentando antecipar a passagem.

Explicava em voz alta a situação, incomodando o silêncio do saguão nos primeiros minutos da manhã ainda escura. Não que houvesse má vontade da atendente, mas é que precisava dar vazão àquela ansiolítica euforia que incendeia o ineditismo de determinado tipo de alegria.

Comprou um livro que o acompanhasse nas duas horas de espera pelo embarque. Até hoje pouco ou nada lembra da história, já que as páginas não capturaram a cabeça nas nuvens. Mesmo assim, esse tornou-se um dos livros inesquecíveis de sua vida.

No voo sua ansiedade tentava, mas não conseguia, aumentar a velocidade de cruzeiro daquele ultrapassado 737 de barulhos medonhos e aeromoças de humores igualmente envelhecidos. E o monstro com sua fuselagem cansada cortava o céu sem nuvens da mesma forma que um magro e cansado burrico galgaria cada metro de uma íngreme picada ao sol.

Finalmente em terra, finalmente em um táxi, finalmente seus pés ganharam com alegria desesperada o corredor infinito do hospital.

A enfermeira idosa, cuja coleção de nascimentos assistidos há muito entrara no imenso campo dos milhares, entregou-lhe a filha enrolada em panos e mantas. Para ver pela primeira vez o rosto mais amado de sua vida, sem jeito ele teve que desfazer um tanto aquele embrulho. Assemelhava-se ao faminto que precisa vencer a casca grossa da fruta até chegar à polpa.

Ela vai ficar com a gente? Perguntou, entortado pela falta de habilidade em segurar pacotes frágeis. Para sempre, respondeu a enfermeira, que dando as costas deve ter ido tratar de outro que chegava ao mundo.

E o resto do dia foi de fotografias, telefonemas… e deslumbramento. A pequena ali no canto do quarto, ao lado da cama da mãe, os olhos fechados em sono profundo, respirando em paz o ar pesado do planeta.

Às nove da noite, ele se lembrou de comer alguma coisa; às dez, de tomar banho; às onze desabou em um daqueles cruéis sofás-cama reservados aos acompanhantes. Apagou como uma velha máquina que se tira da tomada.

Às duas da manhã, começou a ouvir choro de criança lá nas profundezas de seu sono de chumbo, e à medida em que acordava, o choro aumentava, tornando-se estridente, corneta, buzina, alarme de incêndio.

Ela só queria mamar, estava com fome, só isso. Recém-nascidos não sabem manejar panelas, abrir geladeiras.

Ele pulou do sofá, obrigado a acordar rápido e entender logo sua nova realidade.

A partir dali, tudo seria diferente.

Inclusive o amor.

Setembro em Brasília

O vento arrasta as últimas folhas secas e avisa que a chuva não tardará tanto mais, embora não venha amanhã nem depois, ou no final da outra semana.

Avisa que ela está em casa, preparando-se para sair, feito mulher com seus longos banhos, colônias e cremes.

Antes de vir – lembra o vento – a chuva passará na casa da primavera, e juntas buscarão a esperança, trazendo-a criança para todos nós.

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