Anjo

Para Renata Busch

Quando finalmente se conheceram fora do Feici, ela contou entusiasmada o quanto falavam bem dele. Como pessoa, como profissional. E despejava uma cascata volumosa de palavras, de um modo vibrante de quem acha mesmo que não apenas a vida, mas também as pessoas valem a pena.

E repetia que era encontrar gente que o conhecia, e lá vinha outra vez o certificado: bom amigo, sujeito de caráter.

-Eu me sentia roubada. – e riu, mexendo os braços em gestos largos.-Pô, todo mundo conhece esse cara, menos eu!- e suas mechas de mel despencavam longas em seu rosto, escondendo uns olhos de amêndoas tostadas.

Encabulado, ele, quando conseguiu afinal a palavra, ponderou:

-Olha, não é bem assim, sabe? Eu já fui chefe de seção e aí a gente não agrada todo mundo, com certeza tem uma meia dúzia por aí que me quer assado com um tomate na boca. Então, fica preparada, porque você pode topar com um deles e vai achar que não falam da mesma pessoa.

Mas ela não perdeu o rebolado, e com aquele jeito carioca de falar e jogar sambado o cabelo para trás, disse, sem nenhuma dúvida:

-Pois se alguém vier me falar mal de você, eu enfio a porrada!

E soltou uma gargalhada que encheu o ambiente.

Naquela noite, ele foi dormir pensando nuns tais anjos que a mãe falava quando ele era criança, uns anjos que nós, distraídos, muitas vezes nem notamos ao longo da vida, mas que, insistentes, sempre aparecem para nos resgatar dos braços da tristeza.

O bolo desigual da igualdade de Francisco I

A postura do Papa, ao não degolar a pessoa por sua opção sexual, causa boa impressão e talvez desperte a esperança tímida em mudanças, muito mais alardeadas, aliás, pela mídia e sua vocação para a idolatria do que propriamente por algo que Francisco tenha dito.

Mas quando o pontífice fala das mulheres, essa esperança se aquieta e pensa em voltar a dormir.

O mais novo bem amado de uma nação eternamente em busca de um salvador é categórico: sacerdócio não é coisa de mulher.

Fico sabendo que a Igreja desconsidera a batina para as mulheres porque Jesus só escolheu homens como apóstolos.

Penso que é no mínimo a velha e desacreditada tentativa de impor como única a versão oficial da história. O papel que a mulher desempenhou no cristianismo, a começar por Maria Madalena, é certamente algo abafado por uma instituição que, historicamente, sempre esteve ladeada pelo poder, e na maioria das vezes a serviço da opressão.

Qual prova definitiva há de que o Evangelho não foi também escrito e pregado por mulheres? Seria o desconhecimento da existência de algum texto que leve a história a caminhar nesse sentido? É pouco para comprovar algo que o domínio da batina sempre se esforçou em mostrar como verdade absoluta.

A frase “sacerdócio não é para mulheres” é escrita com a mesma tinta e caligrafia que se escreve “lugar de mulher é na cozinha”.

As declarações de Francisco I sobre os homossexuais até podem sugerir igualdade entre as pessoas, mas igualdade é que nem bolo em casa de família: todo mundo tem direito a uma fatia.

Quem explica, quem entende?

Me diga, beibi,
como é apoiar a Marcha das Vadias
gritar fora Renan fora Sarney
que não não é só pelos 20 centavos
tucanos nunca mais
ser tão pós graduada
com projeto de mestrado
sonhos de doutorado
e acatar esse jeito
“sinhozinho de fazenda” do seu namorado?

Ronaldinho Gaúcho, gangorra e bagulho muito doido

Não sei e ninguém deve saber de quem é a frase, mas essa coisa de a vida ser gangorra é teoria consolidada e de aplicação prática.

Então vejamos o caso do Ronaldinho Gaúcho.

Com apenas 17 anos, eu acho, fez um dos mais belos gols da história da Seleção Brasileira (Contra a Venezuela, Copa América, 1999).

Saiu do Grêmio pela porta dos fundos, rodou um pouco pela Europa e parou num Barcelona que, pelo que me lembro, só não era melhor que o do Messi. Lá, foi eleito o melhor do mundo duas vezes.

Antes, no entanto, ajudou – e muito – o Brasil a levantar o quinto caneco de sua história. Lembram que ele colocou o Rivaldo na cara do Gol contra a Inglaterra e depois fez o golaço de falta? Tudo bem, foi expulso depois, mas é por esse tipo de coisa que o futebol é apaixonante.

Em 2006, estava naquela insossa seleção na Copa da Alemanha, aquela em que, segundo O Estado de São Paulo, o outro Ronaldo, na atualidade raso comentarista de TV, fumava, tomava coca-cola  sem parar pelos cantos e repetia para os mais jovens que não sabia o que estava fazendo ali, já que estava mesmo  com a burra transbordando vil metal. Dizem que o Gaúcho foi um dos poucos, senão o único jogador que saiu realmente abatido de campo depois que comprovamos sermos fregueses da França em copas do mundo. Sim, foi aquele jogo em que o Roberto Carlos se preocupou mais em ajeitar a meia.

Dali em diante, a gangorra da vida de Ronaldinho Gaúcho parece que estacionou lá embaixo. Lembrem-se: no mesmo ano o Barcelona perdeu o título mundial para o arquirrival dos tempos de Rio Grande, com um gol de Adriano Gabiru, do qual eu pelo menos nunca mais ouvi falar.

Foi para o Milan, onde parecia não querer mais saber de chamego com a pelota.

Na volta ao Brasil, fez que ia e não foi pro Grêmio, e por lá acho até que o povo prefere ver um colorado do que o dentuço pela frente.

Acabou no Flamengo e depois de aparentar que seria ídolo, saiu brigado e com fama de pinguço. Hoje, percebe-se que por lá as coisas não andaram bem muito mais por incompetência e picaretagem da antiga diretoria.

Foi parar no Atlético, time grande, mas, até então, de títulos pequenos.

Nesse meio tempo, andou queimando ainda mais seu filme, vestindo a amarelinha naquele time sem graça do Mano Menezes. Quando a coisa começou a melhorar pro nosso escrete, teve que engolir o Felipão dando a entender que ele não era bom exemplo para o grupo.

Aí, quando você acha que a vida do cara já desceu mesmo a ladeira e que não sobe mais de volta, ele pega e é campeão no título de Libertadores mais sensacional que um clube brasileiro conquistou.

A vida não é só gangorra. É também um bagulho muito doido, e essa frase é que não sei mesmo de quem é.

O Brasil e seus sofás nas salas

Funcionários de uma empresa que presta serviços ao Aeroporto Internacional de Brasília fizeram manifestação reclamando o pagamento de uma série de direitos. Pelo que li, a empresa é enrolada com falcatruas e deslizes trabalhistas.

Não discutindo a justiça do protesto, é, mais uma vez, pertinente contestar a forma como foi feito: fecharam por três horas a única pista que dá acesso ao Aeroporto da capital do país. Imagine-se o tanto de gente descendo dos táxis e correndo com mala na mão para não perder o voo.

Repito: sou a favor que se pare o trânsito, a cidade, o país e o mundo por uma causa que diga respeito a toda a sociedade. Por questões afetas apenas a um pequeno grupo, não concordo.

Mas, no caso, o objeto central acaba não sendo nem esse, mas sim a imobilidade da administração pública para beneficiar o cidadão.

Como já disse, só existe uma pista rumo ao Aeroporto JK. Nos jornais de hoje, as autoridades discutem como construir uma via alternativa que chegue ao terminal, porque as cercanias são quase todas áreas de preservação ambiental, intocáveis – com toda razão – de acordo com a lei.

Só que não se trata de construir outra via. A que existe é suficiente, ainda mais que está sendo ampliada. O que deve ser feito é simples, porém, no Brasil, autoridade não rima com coragem. Determine-se que nenhuma manifestação classista pode interromper o trânsito, simplesmente porque existe uma regra que remonta aos primeiros tempos da civilidade: o direito de um termina onde começa o do outro. Portanto, quem quiser protestar que berre o dia inteiro se necessário, mas em cima da calçada, sem parar a vida dos outros. Se for pro meio da rua, terá que sair.

Mas não, no Brasil se dá uma volta enorme quando a saída está debaixo do nariz, embora incorra, muitas vezes, em ônus político.

É um bom país, mas com um talento enorme para resolver seus problemas tirando apenas o sofá da sala.

Da série Coisas que passam pela cabeça da gente

1 – O problema de você querer se mostrar otimista demais é acabar se passando por deslumbrado.

2 – Essas pessoas que eram tão nossas amigas quando estávamos por cima, ou quando éramos importantes para seus interesses pessoais, e que hoje nos cumprimentam rapidamente sem nem pararem para falar direito, aumentam tanto nossa sensação de solidão.

O documentário sobre Jango é jornalismo puro

Para quem realmente deseja que o país mude, deve ser parada obrigatória um cinema em que esteja sendo exibido o documentário Dossiê Jango, de Paulo Henrique Fontenelle.

Logo no início, há um depoimento que chama a atenção sobre o momento que o Brasil vivia quando os generais deram o golpe.

Éramos um país cuja inteligência e o talento floresciam em diversos campos da educação, saúde, artes, literatura e pensamento, movido por um forte crescimento econômico. Tudo que se busca e não se encontra atualmente.

Pelo documentário, o Brasil de 64 era aquele universitário brilhante, primeiro da sala, com emprego onde quisesse após a formatura, mas que sofreu um acidente brutal e teve a vida limitada por sequelas gravíssimas.

Então, logo nos primeiros minutos de projeção, cai por terra qualquer dúvida que ainda possa existir se os 21 anos de treva e terror fardados possuíram alguma utilidade para o país.

Mas há outros dois aspectos relevantes no documentário de Fontenelle.

Um joga luz sobre um plano pouco explorado quando se fala de Jango: seu apego com limites éticos ao poder, adjetivo que cairia bem aos políticos de hoje.

Vendo que se resistisse ao golpe nosso território seria dividido pelos EUA e haveria um banho de sangue no país, ele joga a toalha, e junto vão sua vaidade e sua biografia, a qual o documentário tenta devolver parte do reconhecimento merecido.

O outro é o aspecto jornalístico.

O expectador sai do cinema convencido de que as ditaduras sul-americanas mataram não apenas Jango, mas também JK e Lacerda.

Ele não prova isso, porque a prova definitiva não há, mas investiga, vai aos documentos da época, deixa claras as evidências e ouve pessoas pertinentes, inclusive tomando depoimentos inéditos no caso. Ou seja, lança mão de todos os instrumentos necessários para conseguir do público o que um documentário sobre a morte de um ex-Presidente da República precisa: credibilidade.

Coisa que falta ao jornalismo de hoje em dia.

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