Poemas paras Brasília

Brasília está fazendo aniversário e trago em meu blog poemas que escrevi para a cidade em que moro há 26 anos.

Não são poemas deslumbrados pela capital do país; ao contrário, trazem minha visão crítica e até mesmo ácida sobre a cidade, sua gente e seu modo de vida, o que não significa que eu não goste daqui.

Boa leitura!
*
Eu sempre vou morar na 405 norte *

Dona vizinha me para e conta
de quando chegou aqui em 1980,
dos filhos formados, que cresceram
brincando na portaria.
As sombras verticais da tarde
também seguirão minhas filhas até o infinito, eu comento,
e dona vizinha ainda me conta que os dela
nunca deixaram de correr na portaria da memória,
que até hoje brincam na portaria da lembrança
(dona vizinha tem nos olhos uma saudade
que vai do primeiro ao último dos pilotis do bloco.)

Eu gosto da dona-de-casa
que passa com hora marcada
para fazer a unha,
da estudante que some no arvoredo
a caminho da universidade,
de quem veio do Maranhão
do Piauí
e nunca mais voltou.

Há sempre lua alta que a madrugada derrama
nos azulejos da cozinha
quando bebo água no meio da noite.
Há sempre uns pingos da última chuva
pesando nas folhas,
virando breves cristais de sol
nas manhãs afobadas da minha pressa.
Há sempre o vento dando no alto das árvores,
e o barulho das árvores conta de um tempo que não volta,
mas que também não vai embora.
(Por falar em tempo, dona vizinha,
vamos conversando no caminho,
se não perderemos
o baile de inauguração da cidade)

‘Brasilha’ da fantasia*

Ninguém acorda com culpa na Ilha da fantasia,
ninguém se sente culpado na ilha da fantasia
e não ser de todo inocente
é sempre muito normal na ilha da fantasia.
Na ilha da fantasia não interessam
os olhos inocentes dos filhos antes de dormir
os filhos apontados na rua
o que dirão os colegas na escola
e as crianças dos vizinhos.
Não fere arde envergonha
o olhar confuso das crianças
ao ler o que sai nos jornais.

Vamos ao que importa na ilha da fantasia:
a gratificação a estabilidade
a comissão as garantias
o adicional os benefícios
os 18% que me cabem
se não vou aos jornais
e conto da parte que não te cabia mas você levou
na ilha da fantasia.
Eu te filmei eu te gravei
eu sei de tudo da tua
deliciosa doce vida,
portanto, morreremos de mãos dadas
abraçados
atirando uns nos outros
até que nos esqueça a fugacidade da imprensa
e nos confortem as mãos amigas da Justiça
o entendimento do digníssimo desembargador
a interpretação da lei no tribunal superior.

Venha a meu gabinete
passe em meu escritório
vá com sua mulher lá em casa
daremos uma festa
faremos um jantar
quem sabe outros agitos até de manhã.
Ninguém é culpado na ilha da fantasia
ninguém deve nada
à mulher que espera o ônibus
e não combina bolsa e sapato,
à outra que atravessa a BR
longe da passarela,
nenhuma explicação merece o homem cansado
que sai tão cedo e volta tão tarde
levando no rosto
o resto de sonho desfeito.
Todos deitam sem culpa na ilha da fantasia
depois que se apagam as luzes lilases das festas
que se esvaziam as travessas
sossegam as bebedeiras
calam-se os vômitos
encerra-se o pó
e a paz reina envergonhada.

Cidadão comum

Brasília é uma festa,
Eu posso ver daqui de fora
Olhando lá para dentro
As pessoas dançando
Ouvir as músicas
As conversas
Risadas
Dá para sentir
O cheiro da comida
E dos perfumes.
Brasília é uma festa
Sempre vejo daqui de fora
Olhando pela janela
Sem nunca ser convidado.

Brasília como pano de fundo

Em um lobby de hotel
N’algum restaurante caro
Em um meio de semana
No almoço jantar happy hour
(Claro, fora da agenda oficial).
Olhe discretamente
Esses homens de terno, em volta.
Todos são suspeitos
Até que se prove o contrário.

Os pobres que só têm dinheiro

A mendiga alcoólatra
que perambula pela quadra 213 norte de Brasília
dança alegre sua valsa imaginária
enquanto passam taciturnos
carrancudos
empedernidos
cara de quem cultiva ódio feito planta
cria raiva feito bicho
os pós-graduados com mestrado
doutorado na França
a caminho de suas 4 suítes
três vagas
lazer completo.

A mendiga alcoólatra vagante errante
da quadra nobre de Brasília
sorri dá bom dia boa tarde boa noite
estando limpa ou bêbada
enquanto passam olhando
pro chão pra frente nunca para os lados
nunca para ninguém
cara de quem esse mundo não está à sua altura
de quem a humanidade não os merece
os superintendentes
os assessores especiais dos juízes federais
os capachos dos ministros dos tribunais
voltando da rotisserie
do footing
da adega
a caminho de seus 354 m² de área privativa
alto padrão com vista livre para o parque.

Entre um lado e outro
lá passo eu em meu neutro estar
sem muita alegria nem tanta tristeza
pedindo a Deus que tenha piedade
dos pobres e miseráveis.

E dos verdadeiramente pobres e miseráveis.

Os Brasis de Brasília

“Alguém me dá uma ajuda
Pra mim comprar uma cesta básica?”,
grita lá embaixo o Brasil
com fome e sem emprego
na tarde de sábado
entre os vãos dos prédios
com vidro fumê espelhado
mármore e granito
de Brasília
(a capital de todos os brasileiros,
dependendo, é claro, de quem
são esses brasileiros).

Lá em cima, nos quatro quartos com suítes,
nas coberturas com área privativa,
o Brasil com salário em dia
e quinquênio
não ouve:
cochila no sofá depois do almoço,
vendo seriado na Netflix.

Moro em Brasília

sinto
falta
de
andar
com
os
pés
e
descobrir
livrarias
e
cafés.

Correio Braziliense, janeiro de 2024

Brasília em janeiro*

Árvores tortas
decalcam o maior céu do mundo:
Penso nelas como gestos
de quem se afoga,
de quem dá adeus da plataforma.

O sol prateia nuvens musculosas.
Atravessando o Lago,
a vela persegue
lembrança de baía.

Em algum lugar
bem próximo
do horizonte
a tempestade
espreita o fim do dia.

Brasília*

Nos palácios e tribunais
homens de carne e osso
(apenas de carne e osso)
passam falam
nos olham por cima
(como se fossem imortais).

Calçadão Conic – Conjunto Nacional*

O homem na cadeira de rodas segura o saco de mijo com uma das mãos,
com a outra
ergue a receita amarela de sempre
repete a cantilena pesada
feito o dia nublado e quente.
Dó piedade tédio asco indiferença:
é a praxe da maioria,
mas até mesmo “foda-se o homem com saco de mijo
na cadeira de rodas”
poderá ser dito ou pensado,
a depender do dia
e de quem passa.

Logo ali, sentado no chão,
o velho engraçado sem pernas
conta alto piadas indecentes.
Horrorizada,
a beata ao lado sobe a voz estridente
que inferniza em nome de Deus.
Pouco à frente, os trigêmeos cegos
cantam e tocam baião parecendo Rock.
E duas vezes ao dia passo eu,
com o coração a pedir esmolas.

Brasília em agosto

Céu azul
Sem acontecimento de nuvens,
Estático oceano invertido
Inerte na sonolência
Feito quadro
Empoeirado de brechó.
Céu azul de tédio
Onde o tempo não passa
A vida não age
E as árvores marrons
Paradas sem vento
São papéis amarelos
Que aguardam carimbo e despacho
na cidade-repartição autarquia ao ar livre
(ar morno e pesado de mata enfumaçada)

Sinalização*

Sr. visitante,
nesta cidade evitamos buzinar.
E cumprimentar o vizinho.
E dar bom dia no consultório.
E puxar papo na fila.
E tamborilar no elevador.
E cantar na condução.
E abraçar e beijar
quem acabamos de conhecer.

Denuncie,
se vir alguém
com alegria de viver.

Brasília em setembro

No fim da tarde
no cruzamento de avenidas aflitas
além da fumaça do diesel
acima da acidez do chorume
resistia o cheiro novo
da primavera anunciada.

Setembro em Brasília

O vento arrasta as últimas folhas secas e avisa que a chuva não tardará tanto mais, embora não venha amanhã nem depois, ou no final da outra semana.

Avisa que ela está em casa, preparando-se para sair, feito mulher com seus longos banhos, colônias e cremes.

Antes de vir – lembra o vento – a chuva passará na casa da primavera, e juntas buscarão a esperança, trazendo-a criança para todos nós.

*Poemas do livro De Tanto Bater com o Osso, a Dor Vira Anestesia

4 comentários em “Poemas paras Brasília”

  1. Ádlei Carvalho

    Poemas/depoimentos daqueles que ficam para contar ao futuro as histórias de um povo, de um lugar. Mil vivas à sua poesia!

  2. Cláudia Guerreiro

    Sinalização diz quase tudo sobre a capital de todos os brasileiros…

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