Reveillon

Antes que saíssem de casa para a festa, a menina perguntou ao pai, a voz quase engolida pelo espanto:

– Quer dizer que a gente vai sair agora de casa e só vamos voltar no ano que vem?

E como a resposta afirmativa a deixasse ainda mais abismada, arregalou uns olhos tão imensos quanto azuis, nos quais os mais atentos notariam que brotava o fascínio pelo misterioso e inevitável passar do tempo.

No ano que vem

Nada mudará no ano que vem.
Estaremos atendendo nos mesmos postos
Pelos mesmos nomes
Respondendo pelas mesmas funções.
Nenhuma mudança prevista
Previsível
Possível
Que derrube os muros conformados da mesmice,
Nada que venha batendo as portas e janelas
Feito o vento revolucionário da tempestade
E que deixe deliciosamente
Nossas vidas de pernas pro ar.
Nada que nos faça abandonar
Nossa paquidérmica instransponibilidade
De rocha fincada na praia.

Violência e histeria.

Possivelmente vivi hoje a meia hora mais angustiante de minha vida, ao menos dos últimos anos. Era hora do almoço, eu aguardava em casa minha mulher com minhas três filhas e minha irmã, que passa o fim-de-ano conosco. Minha irmã entrou no apartamento com minha filha do meio dizendo que o resto da tropa estava subindo. Cinco, dez minutos, nada. Desci. Certamente minha mulher precisava de ajuda na portaria, está época é mesmo época de pacotes, embrulhos e, lá em casa, sempre todas as épocas são de criança fazendo pirraça, contrariando ordens. Abri a portaria, olhei no pátio dos pilotis do prédio. Nada. Apenas o vento e o silêncio do início da tarde. Espetou-me qualquer agulha de angústia lá por dentro, mas me contive. De início, não me deixei levar por nervosismo, presságio. “Deve estar na vizinha”, tratei de recorrer logo ao mais provável e manter tudo sobre controle. Não estava. “Na outra vizinha, é claro”. Não estava. Desci outra vez à portaria, o carro estacionado não tinha qualquer anormalidade. Minha irmã na janela já franzia o cenho. “Ela deixou o celular na bolsa que eu trouxe”, me avisou, a voz já levada pela preocupação. A essa altura, a agulha da angústia já entrara um pouco mais na carne, e enquanto isso meus olhos aflitos corriam todo o espaço em torno do prédio. Meio a esmo, sem rumo certo, apressei o passo até o comércio, mesmo sabendo da improbabilidade de qualquer compra de última hora. A carteira com dinheiro e cartões estava na bolsa que minha irmã levou, e tendo acabado de estacionar o carro, por que diabos minha mulher iria comprar alguma coisa a pé e levando duas crianças a tiracolo? Nada, nem sinal. Pelo talento que o ser humano tem para pensar no pior, é claro que uma tragédia já se desenhava na minha aflição, mesmo que o cenário não fosse o tradicional de um sequestro – relâmpago. O carro estava lá, e pelo histórico nenhum bandido leva uma mulher com duas crianças enchendo o saco por causa de sono e fome. Mas quem disse que a agonia deixa que o provável venha nos trazer tranquilidade? Quando vemos, já fomos levados por uma corrente de pavor, até por que a criminalidade, infelizmente, também tem gosto pela inovação. Como não quero que esse texto fique do tamanho do desespero que experimentei naqueles minutos, já dou fecho à história. Ela estava na casa de outra vizinha, cuja entrada é pela portaria ao lado (Para quem não conhece, em Brasília os prédios têm quatro portarias, lado-a-lado). A vizinha havia chamado minha mulher para ver uma reforma no apartamento, e ela foi, sem se dar conta de que minha irmã, que ia à frente, não percebera nada disso. Depois que o vendaval do susto passou e a respiração voltou ao normal, concluímos que se vivêssemos cem anos atrás, teríamos como certeza o que realmente aconteceu: um pulinho fora do programado na casa da vizinha e um papo gostoso que se estendeu um pouco mais do que deveria. Mais nada. Hoje em dia, não. Qualquer movimento fora do programado, tudo que seja inesperado, que não tenha aviso, já leva logo na conta a convicção de uma tragédia. A violência das grandes cidades, e a exacerbação dessa mesma violência pela mídia, nos leva ao ouvir um piano se espatifando no chão quando o que caiu foi uma simples moedinha.

Festa e roubalheira

Hoje de manhã a BandNews FM em Brasília veiculou reportagem sobre a programação da festa de fim de ano na Esplanada dos Ministérios. Na reportagem, um popular ouvido pelo repórter João Cláudio Silveira lamentava haver festa para receber o novo ano no momento em que o Distrito Federal vive seu momento político mais degradante e estarrecedor. O entrevistado desfiava o velho discurso de que festa está ligada automaticamente a alienação. Usou a expressão pão e circo para dizer que festa a essa altura dos acontecimentos pode anestesiar o povo, desviar o foco da sociedade para a roubalheira, etc. Lembrei imediatamente da esquerda que torcia contra a seleção de 70. Para eles, a seleção vencendo seria pretexto pro Médici faturar alto. Não acho que a ditadura teria sido diferente, que os generais ficariam menos tempo no poder se o Brasil não fosse tri-campeão naquele ano. Penso que não há fundamento em acusar a festa, o divertimento e a alegria de provocarem a falta de vigilância da sociedade em cima da roubalheira. Por que não podemos saudar a chegada de 2010 em Brasília? Provavelmente seja o caso de levarmos faixas e cartazes de protesto, pedindo a saída da quadrilha que governa o Distrito Federal, mas não de ficarmos em casa lamentando a bandalheira tocada por uma chapa eleita pela maioria da população (que já sabia que o Arruda havia mentido uma vez). Eles, os que roubaram, certamente vão comemorar, com mesa farta, bebida cara e sei lá mais o quê. Alegria e divertimento nada têm a ver com amadurecimento crítico e participação política. Comemoremos, saudemos um novo ano, pulemos da cadeira com a perna direita à meia-noite pedindo que a Justiça acabe coma orgia de panetones na capital do país. A festa na Esplanada dos Ministérios deve ser condenada apenas pelas atrações que vão tocar na virada do ano no coração do poder do país. Assistir a shows de Pedro Paulo & Matheus e Aviões do Forró é pior do que ver deputado botando nosso dinheiro dentro das meias.

Disco mais famoso de Rod Stewart é relançado.

Vi nas prateleiras cada vez mais minguadas das lojas que vendem CDs um dos melhores discos de um cantor solo de Rock: A night on the town, o sétimo disco do simpático Rod Stewart, lançado em 1976. Estava com certa pressa, mas reparei que o CD duplo ( o disco original era simples) parece trazer no segundo CD as mesmas músicas talvez com gravações diferentes, mas não sei ao certo, é palpite de quem estava apressado. Considero esse álbum épico, a começar pela capa. Ele é aquele que estampa uma paródia da tela Bal Au Moulin de la Galette, de Pierre-Auguste Renoir. A obra original custa no mercado de arte U$s 78 milhões. Para quem não está conseguindo visualizar, o quadro é uma praça com um coreto ao fundo, muitos casais dançando e, em primeiro plano, uma senhora abraçada a uma menina em uma roda de homens. Na capa do disco, Rod Stewart aparece desenhado no meio dos rapazes. Na contracapa ele está com um elegante chapéu de palha, um lenço negro no pescoço, erguendo uma antiga taça de champagne. Mas o que se destaca no disco é mesmo a qualidade das músicas. Pra começar, ele abre com uma das mais famosas (ou mesmo a mais famosa, pelo menos no Brasil) música de Rod Stewart, Tonight’s the Night (Gonna be all right). Mas há outros momentos muito bons, entre eles a interpretação fantástica de Rod Stewart para The first cut is the deepest, do Cat Stevens, uma das mais belas canções da música pop. Destaco ainda The Killing of the George (Part I e II) e Pretty Flamingo. O disco, que chegou ao 2º lugar da parada da Billboard, tem bastante piano e metaleiras, marca do som desse inglês/escocês apaixonado por futebol e que começou na década de sessenta cantando na Banda de Jeff Beck. O defeito deste CD duplo é o preço: R$ 49,90, o que afasta até mesmo gente igual a mim, que ainda insiste em comprar CDs.

Morre o guitarrista de Janis Joplin

As agências de notícias informam que morreu James Gurley. Para quem não acompanha a história das grandes bandas de Rock’n Roll da história, esse nome não significa nada. Para quem acompanha, sabe o que o cara significou. Gurley foi o guitarrista da Big Brother and The Holding Company, a banda que na metade da década de 60 tinha como vocalista uma garota branca que cantava como negra: Janis Joplin. Ele morreu em um hospital nos Estados Unidos. Estava com setenta anos de muito Rock, ácidos e alucinógenos. James Gurley é considerado um dos precussores do psicodelismo que dominou a música no tempo da guerra do Vietnã, Festival de Woodstock e outros acontecimentos. Para fazer aquele som “muito doido” (e maravilhoso) da época, James Gurley aprontava nos palcos com os amplificadores e também com aparelhos chamados de vibradores elétricos (não consta que sejam os utilizados hoje para outros fins). Toda essa loucura de experimentos, criatividade e – por que não – talento impulsionou uma das mais belas vozes da história do Rock em canções como Summertime, Ball and chain ou na maravilhosa Cry Baby. O que me chama a atenção na vida de James Gurley são os antecedentes dele antes de se tornar famoso com a música. Morou em casas de papelão ao longo da costa da Califórnia e com índios no México. Quando era criança, o pai, um acrobata automobilístico (sabe-se lá o que isso significa), usava o garoto como ornamento do capô do carro que dirigia por um muro de madeira em chamas. Um sujeito desses só podia mesmo tocar Rock’n Roll e ser guiatrrista de Janis Joplin. Mais informações sobre James Gurley neste link do G1 http://g1.globo.com/Noticias/Musica/0,,MUL1426153-7085,00-MORRE+O+GUITARRISTA+DA+PRIMEIRA+BANDA+DE+JANIS+JOPLIN.html

Conto no site da Ficções

O site da Revista Ficções publica um conto meu inédito. Pedro e o sonho está concorrendo a ser publicado no próximo número impresso da revista, previsto para sair em fevereiro. A Revista Ficções é uma das mais importantes da literatura brasileira, e agora, com o site, amplia a oportunidade de publicação para nós, escritores. Pelas normas da revista, os textos são publicados no site sob pseudônimo. O meu é Hugo Pereira, uma homenagem a meu pai. Escrevi Pedro e o Sonho em maio deste ano, depois de um sonho confuso que tive, onde meu passado se misturava a fatos totalmente irreais, que nunca me aconteceram. É inédito mesmo, minha mulher, Raquel, foi a única que leu. Acessem o site da revista http://www.revistaficcoes.com.br/ e deixem um comentário se puderem, se gostarem do que vão ler. Parece que os mais “bem comentados” sairão na edição impressa. Ser publicado pela Ficções é algo bem especial para todo o escritor.

Os necessitados fora de agenda

1.
Pensou em correr para atravessar com o sinal aberto, mas desistiu. Os carros vinham do fundo da tarde azul e passavam por ele fazendo vento para seus cabelos, levando poeira a seus olhos. Estava pensando em quantos minutos afinal levaria o sinal aberto para o trânsito, quando pressentiu que alguém parava a seu lado, e antes que o pressentimento virasse mesmo certeza ele já ouvia a voz nascer encurralada pelo barulho do trânsito: moço, ô moço! Era uma daquelas vozes enfraquecidas de povo miserável, de gente que pede de manhã até à noite, que pede desde que nasceu, que pede tanto que às vezes nem sabe exatamente o quê.
Moço, ô moço! Repetiu a mulher com pouco mais de trinta anos. Vestia-se com dignidade, embora o tempo já houvesse vencido o viço e as cores da blusa e da saia. Não estava descabelada, mas via-se que arrumara o penteado de modo que não percebessem que o cabelo não era de receber cremes e xampus. Trazia pela mão uma menina de seus oito ou nove anos, que tinha uns olhos cansados demais para tão pouca idade. Do outro lado da mulher, uma senhora grisalha mantinha baixa a cabeça para não encará-lo.
Os carros passando e mesmo assim ele já tirava um dos pés do meio-fio como se fosse atravessar, como se estivesse, quase que por instinto, tentando se afastar daquela insistência aflita: moço, ô moço! Mas ela segurou seu braço com a firmeza dos necessitados. Agora não, outra hora, ele começava a rechaçá-la quando ela emendou a história. Falava devagar e ele percebia que não era por tranqüilidade, mas por fraqueza. Veio do interior para uma consulta no hospital público da capital. O problema é minha mãe, moço – e apontou a senhora – nasceu um caroço na mama dela, lá na cidade não fazem exame, a coisa tá que não pára de crescer. E aí – ela continuava – só tinha dinheiro pra vir, a gente mesmo não comeu nada e nem quer, só quer voltar. Moço, desculpa pedir. E ficou calada esperando.
Ele virou-se para a rua. Os carros reduziam a velocidade, iam parando. Um ou dois ainda passaram com o sinal amarelo que em um segundo ficou vermelho. O silêncio da pedinte era mais forte que os ruídos da avenida. Moço, ô moço! E agora ela repetia apenas com os olhos.
Agora não, outra hora. E ele partiu decidido para a calçada oposta.
Os passos apressados sacudiram idéias. ”Essa gente, sei lá… falam tanto pra não dar esmola, a televisão mesmo mostra uns e outros ganhando a vida sem fazer força. E tem os que usam criança, velho, todo mundo, só pra amolecer a gente e nos fazer de bobo”. Falava sozinho, como se precisasse ouvir a própria voz para se convencer.
Mas quando alcançou o outro lado, já não tinha qualquer certeza do que deveria pensar.
Virou-se para trás e na calçada de onde viera, a mulher olhava com desânimo a extensão da avenida tomada pelas sombras da tarde. A criança puxava-lhe o braço sem receber atenção. A senhora permanecia sem querer encarar o mundo.
Ei! Ele gritou. Separados por motores impacientes, ela não o escutou. Ei, moça! Gritou mais forte. Quando a mulher enfim olhou, ele levantou o braço e pediu com um gesto: espere aí, espere aí, embora ela não houvesse feito menção de dar sequer um passo. Mesmo à distância ele conseguiu notar esperança naqueles olhos tão secos.
Tome, é o que eu posso dar agora, e esbaforido estendeu a mão com algumas notas assim que se aproximou das três.
Ela agradeceu e alguma coisa em seu semblante sugeria compreensão e dignidade. Puxou pela mão a filha distraída de um lado e a mãe encabulada de outro. Ele ainda as acompanhou com os olhos por alguns metros, antes de correr e aproveitar o sinal vermelho para os carros.

2.
Logo que colocou os pratos sujos em cima da pia, tocaram o interfone.
– Moço, o senhor tem um prato de comida “pra me dá? “
E uma voz firme de garoto, certa do que queria, cortava o silêncio da noite.
Entretanto, mais objetiva foi a resposta, quase mecânica.
– Não, hoje não tem nada, não.
E desligou o aparelho pensando no dia difícil que tivera, no dia difícil que seria o próximo, na sua vida difícil de viver.
Já quase esquecia do garoto quando sobreveio um pensamento involuntário, e dentro da cabeça ouviu a própria voz, mas como se outra pessoa falasse com ela: “Como não há comida hoje?”
E parou de estalo no meio da cozinha, como se alguém houvesse entrado em sua frente. Segurava sem firmeza um pano de prato e alguns talheres. Continuava ouvindo a própria voz, sempre como se outra pessoa falasse: “E a metade da panela de sopa que sobrou do jantar? E os dois pedaços de pão ainda bem frescos? E esse pedaço de frango assado que certamente irá amanhã para o lixo? E essas bananas amarelinhas que chegaram hoje mesmo da feira?”
E antes que a voz o deixasse inteiramente zonzo, pegou no interfone e chamou alto, na esperança de que ele ainda não houvesse saído dali.
– Ei menino! Você tá aí?
A voz continuava firme, e agora se elevava em tom de esperança.
– Tô, tio. O senhor tem comida?
Disse que sim e pedindo que o menino não saísse, julgava pedir perdão a Deus.
Retirou dos armários aqueles potes vazios de sorvete. Em um deles despejou a sopa; no outro, o frango. Colocou-os para esquentar algum tempo no micro ondas e enquanto arrumava os pães e as bananas num terceiro pote, notou que suas mãos tremiam de ansiedade e que invadia seu peito um estranho amor imenso; vibrante, ao mesmo tempo sereno.
Nem bem abriu a portaria do prédio, foi dizendo ao garoto tudo que trazia. Parecia até mais afobado que o pedinte faminto.
– Cuidado que a sopa e o frango estão bem quentes.
O menino agradeceu olhando os potes como quem assiste a um grande espetáculo no céu.
Ele voltou para o apartamento subindo a passos lentos e trêmulos as escadas do prédio. “Tive fome e me destes de comer; estive preso e fostes me visitar”, e sua própria voz insistia com palavras de outra pessoa, não importando se a ordem exata das frases não fosse exatamente aquela.

A semana em que voltei a ter 12 anos.

Semana passada, depois que o Flamengo assumiu a ponta da tabela e ficou a uma vitória do título, fui dormir eufórico, em paz com a vida. Mas já na segunda-feira acordei com um nó no peito, não obstante a alegria. Uma angústia abraçava minh’alma, fazia peso em meus pés como se para andar eu precisasse remôve-los, a cada passo, de uma espessa camada de lodo.

E se o Flamengo decepcionasse? E se toda a euforia da vitória contra o Corinthians, a liderança conquistada graças também ao tropeço do São Paulo fossem consumidas feito chama de vela em vendaval por causa de um branco no time, de uma apatia generalizada, de uma derrota para a própria ansiedade do plantel? Em um já distante junho de 1980 também arrastei essa angústia por  cerca de uma semana, período que separou a vitória por 1X0 do Atlético Mineiro – primeira partida da final daquele ano – dos épicos 3X2 no Maracanã, quando o Nunes enlouqueceu metade do país ao 37 do segundo tempo.

Ia e voltava do colégio equacionando em minha cabeça de vento de pré-adolescente todos os resultados que dariam ao Flamengo o primeiro título nacional do clube. E aquela angústia me apertava o peito, me roubava a atenção que eu deveria ter às aulas, me tolia o apetite, dilacerava meu sono em noites em claro. Meu Deus, e o medo da decepção? Naquele ano me convenci que torcedor torce e se agarra a isso por que tem medo da decepção, pavor de acordar no dia seguinte à perda de um campeonato e não ter a euforia do título como combustível para enfrentar uma segunda-feira.

Hoje, 29 anos depois, estou plenamente convicto disso. Na última semana, não comi bem, dormi pior ainda, vaguei irritadiço pelo  trabalho, pela casa, apavorado com a possibilidade do Flamengo perder o título dentro de casa, e eu ter que arrastar minha dor, minha decepção pela segunda-feira, pela semana adentro, pela vida afora. Exatamente igual a 1980, com a diferença de que lá tratava-se de um menino de 12 anos. Agora, o soberano no reinado turvo da angústia era um homem de 41, pai de família, chefe de seção e uma penca de responsabilidades bem mais sérias do que o Flamengo.

Cheguei às raias do ridículo de pensar em refazer roteiros, usar roupas, comer isso ou aquilo outro que tenha feito, usado ou comido na semana que antecedeu o jogo contra o Corinthians, quando assumimos a ponta da tabela. Se alguém cruzava meu caminho com a camiseta do São Paulo, do Palmeiras ou do Internacional, eu cuidava em virar os olhos, certo de que se tratava de presságio, de aviso para que eu preparasse meu espírito para a desilusão. Quando o Grêmio, que diziam que iria entregar o jogo, fez 1X0 pensei em minha inquietação dos últimos dias como amiga que passou a semana toda me preparando para o pior.

E mesmo após o gol da virada, o diabo da angústia permaneceu ali no canto da sala, encostada na parede, resistindo em teimar que eu passaria a segunda-feira arrastando o desengano cruel de viver. Quando o jogo acabou, pus a miserável a ponta-pés para fora de casa, e fui para a janela libertar aquela coração encurralado, aos berros, chorando, exatamente como em 1980.

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