Sobre carnaval*

serpentina

Na sexta-feira, na hora do almoço, o pai veio com a notícia: teria que passar o sábado e o domingo em Volta Redonda. É que surgira um entrevero entre a empresa em que trabalhava e a Companhia Siderúrgia Nacional, a poderosa CSN, àquela época ainda estatal. O patrão nem quis discutir se era carnaval. Vá lá, veja do que se trata e só volte quando tudo estiver resolvido.

O menino, decepcionado, olhou os olhos baixos da mãe, que foram parar no chão igualmente desencantados. Haviam programado um passeio, zoológico, Quinta da Boa Vista, pelo que parecia.

Logo em seguida, o rosto do pai clareou-se em idéia de conforto.

Por que não vamos todos? Mal ou bem, dá-se um passeio.

Daquela proposta à manhã de sábado, tudo o mais se apagou da memória do menino. Desde lá, só se lembra do dia muito azul, e bem cedo todos já de pé: o pai, a mãe e ele, indócil,  como bem sabem ser as crianças perante as novidades. Deveria ser lá pela metade dos anos 70, nem bem tinha sete anos, pelo que pode recordar.

E agora, o baile do nosso querido folião!

E os pais, quase em coro, apontaram-lhe o fusca laranja, tirado semanas antes da concessionária, todo decorado de serpentina e confete. Nas mãos do pai, um colorido e sonoro reco-reco, roubando o silêncio da manhã que o sol do verão começava a esquentar. A mãe lhe entregou um pacotinho de confete, e girou com ele no colo, cantando mansamente em seus ouvidos:

“Ó, mas quanto riso!

Ó, quanta alegria!

Mais de mil palhaços no salão…”

A memória corta a cena já para a estrada. Ele segura forte um rolinho de serpentina, de onde sobra um pedaço desenrolado, quase se desprendendo enlouquecido pelo vento que entra forte pela janela do pai. Junto, vem um cheiro de eucalipto perfumar a liberdade da estrada. No rádio, ouvem um especial sobre antigas marchinhas de carnaval.

“Ó, mas quanto riso!

Ó, quanta alegria…”

É a que toca lá pelas tantas, e a mãe arregala os olhos num tipo de espanto feliz. Emenda a letra, pega-lhe os dedos, e mesmo no carro em velocidade imita movimentos de um salão de baile.

Agora, no quarto escuro, no limiar abafado da quarta-feira de cinzas, uma brisa de momento traz alívio apressado para o calor da noite. Não tem a força do vento da janela do fusca, não cheira a eucalipto de estrada, mas carrega saudade maior que a distância do passado.

*Publicada originalmente em fevereiro de 2010

Males a espantar*

Por SÍLVIO RIBAS
silvioribas.df@dabr.com.br

Em 1968, pouco depois do assassinato do pastor Martin Luther King e do presidenciável americano Bob Kennedy, o rei do rock, Elvis Aaron Presley (1935-1977) surpreendeu a todos ao gravar uma belíssima canção em homenagem aos dois líderes pacifistas. Procure na internet o vídeo dele cantando If I can dream. É de emocionar ouvir aquele hino gospel de forte conteúdo político, um clamor pelo fim das tensões raciais nos Estados Unidos. Sua súplica pela concórdia humana ainda é inspiradora e atualíssima.

Diante da covardia de bandidos, muitos deles adolescentes, contra alvos inocentes, dos massacres chapas-brancas, da perseguição aos gays na África e de tantas outras atrocidades mundo afora, não entendo por que os artistas de hoje abandonaram o papel de profetas da paz e da liberdade. Imagine, música gravada e lançada pelo beatle John Lennon (1940-1980) em 1971 nunca deixará, por exemplo, de ser manifesto antológico pela tolerância e fim definitivo da insanidade das guerras.

O ditado popular “quem canta os males espanta” serve bem ao individualismo, mas o grande mal a ser espantado requer o engajamento de celebridades e de formadores de opinião. Foi assim que os ataques ianques ao Vietnã terminaram. A fome da Etiópia só envergonhou o coletivo de nações após o embalo de We are the world (1985), hit liderado por Michael Jackson e entoado por uma constelação de outros 44 cantores pop.

Da última vez que falei nesse espaço das crescentes ansiedade e irritação dos brasileiros, com ataques gratuitos de fúria no trânsito e no entorno de estádios de futebol, um leitor me procurou para dizer que boas vibrações ajudariam a desanuviar esse horizonte. Receio, contudo, que, mesmo válidas e até desejáveis, tais iniciativas são insuficientes para tornar nossa vida mais segura e a sociedade mais fraterna. Será preciso agir de forma mais explícita.

Se Lennon ainda estivesse vivo, estaria deitando e rolando nas redes sociais ao lado de Yoko, Bono Vox e companhia, em prol do cessar fogo, do desarmamento e do amparo às vítimas de conflitos armados. Mas a esperança não acabou. Para mim, a melhor notícia da semana veio de Israel, onde muçulmanos sírios feridos pelas bombas e projéteis são acolhidos secretamente em hospitais do exército judeu. Esses e outros gritos de dor e de desespero precisam da sensibilidade de astros da música, cujas vozes poderiam acordar a humanidade.

 

* Publicado no Correio Braziliense em  27/02/2014

 

A atualidade do Clube da Esquina

Beto Guedes fez parte do lado B da minha adolescência e juventude. Ele, Milton Nascimento e Lô Borges.

Passei parte deste fim de semana ouvindo seus discos e mais uns dois ou três do Milton. Todos da época do Clube da Esquina, movimento dos mais ricos da música brasileira.

Não os ouvia há bastante tempo e a riqueza da sonoridade me causou uma espécie de novo impacto embalado de reminiscências. Certamente o amadurecimento dos ouvidos, mais aptos a captar o requinte instrumental, também contribuiu para isso.

Mas o que me chamou mais a atenção foram as letras. Praticamente todas são permeadas pelas palavras liberdade, amor, paz, igualdade ou outras de mesmos campos semânticos. São letras que falam da busca por um mundo novo, feitas em época em que o pais verdadeiro era asfixiado e torturado em porões e salas escuras dos quartéis.

Justamente por isso versam sobre temas tão caros, porque foram escritas sob a sombra do horror e da necessidade de dele fugir e com ele acabar. Porque foram escritas com a consciência da importância da liberdade e da democracia.

Apensar de já terem 40 anos, acho que devemos prestar novamente atenção a elas nessa nossa época de intolerância, em que há gente que, tendo sempre desfrutado da liberdade, defende sem qualquer conhecimento histórico o recrudescimento das trevas.

Clube da esquina

O ufanismo gelado da Globo

Ufanismo é algo para mim irritante.

Quando com fins comerciais, então, tanto pior.

A não ser pelas piruetas dos patinadores no gelo, impensáveis para nós terráqueos, acompanho os Jogos Olímpicos de Inverno com tanto interesse quanto acompanho o movimento da bolsa de Taiwan.

Para promover a competição e dar lucro a seus patrocinadores, a TV Globo leva ao ar uma reportagem-exaltação (gênero bem desenvolvido pela emissora) sobre uma patinadora brasileira. Mas, peraí, lá pelas tantas o repórter, sempre com aquele texto obrigatoriamente “simpático, divertido e descolado” quando o assunto é esporte, informa que ela, na verdade, é americana e filha de uma brasileira com um americano.

Na entrevista, o sotaque tipo gringo pedindo informação em Copacabana confirma que a ligação da atleta com o Brasil não justifica que fiquemos assim tão comovidos pelo seu mau desempenho na prova, como a reportagem e seu texto “tocante e sentido” deseja que fiquemos.

Pra encerrar o boletim sobre os Jogos de Inverno, o mesmo repórter põe nas alturas uma dupla brasileira que disputou a prova no trenó. E quando já imaginamos que o desempenho da dupla derreteu o gelo na Rússia, o repórter informa que ela foi a última colocada.

Promover noticiosamente um evento é justo. Respeitar o atleta, independentemente do resultado, é o correto.

Mas que não se falseie a realidade, em respeito ao telespectador.

Tip of the Iceberg

Livros da Minha Vida 5 – Para Gostar de Ler

Para gostar de ler

Certamente essa coleção ajudou a formar, nos bancos de escola, uma geração de leitores entre os anos 70 e 80.

Pelo que me lembro, foram seis ou sete volumes. Os primeiros reuniram crônicas de Drummond, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga. E até onde minha vida de estudante permitiu acompanhar, lembro-me também das capas com Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa e Mário Quintana.

Foi uma estratégia editorial bem inteligente da Ática, selo tão vivo na memória estudantil de 30, 40 anos atrás. Com sua linguagem coloquial e seus temas do quotidiano, a crônica é uma excelente porta de entrada para a leitura. No meu caso, em particular, o gênero foi além, tornando-se um dos plantadores da sementinha do jornalismo.

E digo mais: por meio da crônica – e das crônicas publicadas na série Para Gostar de Ler – descobri três dos escritores que mais marcaram minha vida, tanto de leitor quanto de autor.

Mas isso é assunto pra depois.

Para Gostar de ler 2

Simples assim

Uma enquete no portal da Câmara dos Deputados pergunta se somos a favor ou contra o conceito de família como núcleo formado a partir da união entre homem e mulher.

Sou a favor  do conceito de família como núcleo formado a partir do amor.

Serve?

http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITOS-HUMANOS/461790-CAMARA-PROMOVE-ENQUETE-SOBRE-CONCEITO-DE-FAMILIA.html

Dez anos sem cigarro

pulmoes

Há exatamente dez anos eu parei de fumar.

O momento chegou a ser solene. Eram 16h30 de uma sexta-feira nublada, 13 de fevereiro de 2004. Acendi o cigarro e disse para mim mesmo em voz baixa, mas firme e decidida: “Este é o último!”.

E foi. Nunca mais fumei.

Intensificar atividades físicas, mastigar cravo e beber água todas as vezes que vinha a vontade foram um dos artifícios que utilizei para largar o fumo. O mais forte deles, no entanto, era a certeza de que cada cigarro reduzia meu tempo de vida ao lado da minha filha mais velha, à época filha única.

Nem nos primeiros dias de abstinência abri mão daquilo que chama o cigarro: vinho, cerveja, café. Imaginei que se me afastasse também, mesmo que temporariamente, desses prazeres – saudáveis em quantidade moderada–, a vontade de fumar poderia ressurgir incontrolável quando eu voltasse a virar uma taça, um copo, uma xícara. Minha nova vida, como ex-tabagista, não poderia me privar de certos sabores. Que, inclusive, ficariam mais apurados sem o cigarro.

E aproveitando que falei em prazer e sabores, talvez um caminho para combater o fumo seja o de assumir que o cigarro realmente dá prazer. Quem acha o contrário nunca foi tabagista. Só que essa consciência deve vir acompanhada da certeza de que o prazer da vida sem cigarro é infinitas vezes maior.

A ganância no cálculo inflacionário

Vejo na TV que os preços das bebidas subiram mais de 10% neste verão de estupidez, rios baixos e muita reza contra e a favor de um apagão.

Representante de uma das inúmeras associações do comércio ou indústria diz que o galope dos preços tem dois motivos: a demanda, pois derretendo como estão as pessoas bebem mais, e a velha e batida carga tributária, vilã sempre surrada nos discursos sobre a cadeia produtiva nacional.

Só se esqueceu de mencionar um item que compõe qualquer cálculo inflacionário: a ganância de (muitos) empresários e comerciantes, cujo apetite pelo lucro sempre se disfarça com máscara cínica de bom empreendedor comprometido com o bem do país, vítima “frágil” da fúria arrecadadora do Estado.

ganância

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