Só acho

Eu acho que para ser denso e profundo, ou querer parecer que é, um autor não precisa escrever para que ninguém entenda, muito menos aparecer nas fotos de orelha de livro, suplemento literário ou mesmo rede social com cara de quem não faz cocô há três dias.

Só acho.

Maria e meus poemas (outra história dos anos 90)


Ah, Maria! Quantos poemas, Maria, quantos poemas possíveis quando deixas os olhos abertos aguardando as constelações no fim de tarde. Maria, quantos poemas inseminados de vento gelado…trovas, estrofes, métricas perfeitas, modernismo, futurismo, rimas ricas, caras, entrelaçadas, contos, novelas e até romances, Maria, veja só, romances épicos, premiados, best sellers vendendo mais do que amendoim torrado em bar da Avenida Atlântica.

Palavras, Maria, Palavras! Páginas de um dicionário inteiro voam quando teus olhos me fitam por distração, matando o tempo enquanto não chegam as constelações do fim de tarde. Ah, Maria! E eu que nunca cacei borboletas, deixo as palavras passarem por minhas mãos rumo ao princípio do planeta. Você calada já diz tudo, Maria, e eu quero ser um poeta calado, embriagado do teu silêncio. Você calada e a poesia sobrevivendo aos cães do mundo. Ela passa batom discreto, bate a porta e vai ver o luar de todo o céu.

Ah, Maria! Poemas, Maria, poemas! É tudo que tenho vontade de fazer quando penso em teu cabelo na cara, minha adorada bonequinha de pano maltratada pelo frio. Poemas, Maria, o dia inteiro escrevendo para ti, os pés na mesa, a casa de lado imitando o caos, louça na pia, poeira no móvel, cabelo, barba crescendo, a esferográfica me dando calo na dobra do dedo e a agenda do ano retrasado sobre o colo, encharcada do teu nome, Maria. Poemas de todos os tipos: odes, sonetos ultrapassados, quadras, tercetos, versos livres, sambas rimados, hai khais mínimos como folhas de trevos, longas e longas páginas cobrindo a Avenida Brasil, do Caju a Santa Cruz. Poemas, Maria, que fizessem justiça, que curassem doentes, abrigassem crianças, matassem fome, frio, mas que me levassem contigo, Maria, pra Taiwan, Luxemburgo, Bali, Madagascar. Poemas, Maria! Poemas que tornassem possível transformar em Enterprise que sobe as serras meu Passat 82 queimando óleo. Eu e você dentro dele, acima das nuvens, sentindo cheiro de baunilha, framboesa, damasco, hortelã.

Ah, Maria! Quantos poemas possíveis quando me abraças tirando-me o chão dos pés e me pões para andar descalço no cosmos, como se fora ele o tapete de luxo que não tenho na sala. E eu sinto, Maria, eu juro que sinto, não é mentira, eu sinto as estrelas entre meus dedos como se fosse a terra bem fina do leito dos rios. Ah, Maria, em quantos poemas te imagino aqui em casa, sem amarras, solta de engrenagens, chegando sem aviso, ensopada, das profundezas de um temporal, rindo da minha cara de surpresa abrindo a porta, pedindo uma camiseta seca e um pouco de carinho e êxtase madrugada adentro. Ah, Maria, com você aqui em casa eu invento um chalé em Teresópolis, um bangalô em Arraial ou deixo tudo assim mesmo, nesse “apertamento” de homem solitário – onde do quarto acendo a luz da cozinha sem tirar os pés da sala – de medidas certas para você e eu.

Ah, Maria, quantos poemas possíveis com você aqui em casa e a gente comendo macarrão em um só prato, como se fôssemos mesmo The Lady and The Bad Tramp, uma distribuição NetWork, versão brasileira A6 São Paulo. Você viu quando era criança? Claro, eu sei, todo mundo viu. Mas eu te prefiro boneca de pano a dama, a Demi Moore ou Daryll Hanna. Maria, você não é filme, nem teatro meu ou do absurdo. É só poesia inspirando a música louca dos pardais.

Resenha de Krishnamurti Góes Dos Anjos para As Filhas Moravam com Ele

“As filhas moravam com ele” é o título da coletânea de contos que o jornalista e escritor André Giusti acaba de publicar pela Editora Caos & letras. Lemos em sinopse da obra, que Giusti nasceu na cidade do Rio de Janeiro e mora em Brasília desde o final dos anos 90. Tem nove livros publicados entre contos, crônicas e poemas. Também é jornalista com 30 anos de experiência. Já foi repórter, apresentador e chefe de redação no Sistema Globo de Rádio e no Grupo Bandeirantes de Comunicação. São informações que para mim, se revestem de certa justificativa do porque guardo deste autor (assim como de outros tantos), como que uma luzinha que acende na memória, quando ouço seu nome. Seria mais correto afirmar que uma centelha me ilumina a memória como sinônimo de qualidade literária. Voltaremos a isto adiante…

20 narrativas estão agrupadas no volume. Todas de inegável qualidade a mostrarem que foram redigidas por autor experiente e de sensibilidade acima da média. Entretanto, não nos parece que há, por assim dizer, uma temática comum, ou por outo lado, e ingenuamente, um agrupamento casual. Há mais, muito mais. Embora a sinopse acima nos informe também que Giusti escreveu parte dos 20 textos desse volume nos últimos dois anos sobre o impacto da pandemia, e haja também textos dos anos dois mil, e até mesmo da década de 1990, que não haviam sido publicados em livros anteriores, somos impelidos a divisar duas tendências, duas vertentes que parecem se firmar no conjunto da obra de um autor que tem plena consciência de que a linguagem é seu instrumento cirúrgico por excelência. Ao sugerir a verticalização sugestiva no conjunto dos textos, ele aplaina arestas, desbasta o acessório e acaba por impor aquilo que, a seu ver, é o núcleo e constitui a essência, o cerne do momento revelador de cada um, e que se bifurca como dissemos, seguindo duas direções que, ao fim e ao cabo, se entrelaçam ao tempo em que se complementam.

De um lado temos os textos nos quais parece falar mais alto a preocupação com o social, e as relações entre os homens no mundo contemporâneo. Há toda uma elaboração crítica da nossa tragédia social, expressa na doença das diferenças e das violências – violências da pobreza e da miséria, mas também a violência moral, a violência de quem está manietado pela desesperança… Um verdadeiro inventário crítico da sociedade de consumo.
Em “Adega do bairro”, temos o suprassumo do que é a classe média brasileira e como nos comportamos ante quem nos parece mais pobre e/ou mais ‘rico’ do que nós. A ida a uma adega de bairro, primeiro para comprar um vinho barato, alcança aos poucos, pela repetição, desejos de consumo mais apurados e mais caros. A conversa com outro frequentador, vai incutindo no protagonista, desprezo pelos de sua condição social de cidadão classe média com o salário apertado e contadinho. Humilhação, escárnio, desdém e menosprezo vão criando uma atmosfera, que incita estados de paroxismos que redundam em violências extremas no qual avulta a dimensão da pequenez humana. “Uma história de Brasília”, começa sentencioso: “O erro de Venâncio foi não ter notado que ser fisgado por aquele olhar de abismos seria toda a sua perdição. Pois era isso o olhar de Paula.” É um conto no qual o patético drama da sobrevivência nas zonas rurais de periferia se confronta com o lado diabólico do erotismo – a busca do prazer como fuga ao desespero existencial, a competição vitoriosa com a morte na fugacidade de orgasmos. Tudo a prenunciar o veio trágico que irá aflorar no desfecho.

A leitora Michelle Mattos e um dos contos de As Filhas

Em “Outra história de Brasília”, temos a prosaica atuação de um servente que limpa o chão de um corredor de certa “corte especial do tribunal pleno”, até que é repreendido por um desembargador, simplesmente porque não quer ter sua passagem pelo local obstaculizada pelas vassouras, rodos e panos imundos do servente. Vejam só… Já em “O maestro e o matador” há certa semelhança com o conto anterior. Assemelham-se no que diz respeito ao encontro fortuito de gente de variados estratos sociais. Neste, é a vez de outro servente, o Tomirez, se encontrar com o doutor Otto, principal executivo da matriz brasileira do conglomerado alemão. A trama do texto acaba juntando esses dois homens naquilo que tanto o brasileiro endeusa. O futebol. Uma promessa de redenção? De inclusão social? – oh expressão mais filhadaputa essa no Brasil, que serve para tudo, inclusive e sobretudo, para manter tudinho como está”, O futebol. A funcionar como mecanismo de generalizada e perdoada injustiça e sua lenta e prazerosa amortização. Todos esses contos sem dúvida, representam expressões distintas e diversas de uma mesma denúncia social. E finalmente, lemos o excepcional “Ana Célia” uma a contundente e pungente crítica à sociedade de consumo e os padrões de valores que acachapam o humano.

Já em outros contos, e aqui a vertente ainda mais interessante do livro, é flagrante a preocupação em captar não o detalhe cotidiano, mas a angustia dos personagens com problemas maiores que estão por trás da situação narrada. O sofrimento (e há muitas reflexões amargas na obra) está na esfera individual. A denúncia social se equilibra ao momento lírico e provoca efeitos contundentes no leitor. Aparecem os problemas de homens comuns, num país tão cheio de diferenças e de discrepâncias, como símbolos de riqueza convivendo ao lado de imensas carências sociais, ou como poesia que sobrevive em meio à pobreza, à miséria, à corrupção. O narrador dos contos está habituado a saltar de um desses níveis a outro sorrateiramente, sem aviso para o leitor que, muitas vezes, conclui a leitura completamente atônito, porém mais humano. E isto permite ao leitor o estabelecimento de afinidades entre prosa e a poesia ou a filosofia, graças ao grau de subjetividade aliada à expressão capaz de definir fatos e sentimentos. São vários os exemplos, dos quais citamos: “A felicidade dolorida do perfume de loção (ou Maria Paula não saberá)”, “Mariana em trinta metros”, “A moça do jaleco Branco”, “2226-1307”, “As filhas moravam com ele” e ainda mais um digno de figurar em qualquer antologia mundial do gênero conto: “Bairro Anatole”. São textos que intensificam a presença da vivência subjetiva na narração de dados objetivos, na expressão do mundo narrado. Positivamente, a representação esclarecidamente realista recebe musculatura com a valorização da subjetividade.

As Filhas Moravam com Ele pode ser adquirido no alto da pégina

Na impossibilidade de comentar cada um deles detidamente, falemos rapidamente de “Bairro Anatole”, texto no qual o talento do autor converte o relato a um contrário da narrativa clássica e faz dele um testemunho da situação do indivíduo que liquida a si mesmo nesses tempos em que não se pode mais garantir o mundo cheio de sentido. No âmbito textual, a subjetividade, aliada à simplicidade e pureza da linguagem, leva o leitor a co-realizar algo já realizado, como se estivesse presente na ação.

No primeiro parágrafo desta resenha, mencionei a centelha de qualidade que me vem à mente ao saber de novos livros desse autor. Há exatos sete anos (2017), escrevi sobre Giusti, à propósito de seu livro de contos “A maturidade angustiada”: A literatura opera exatamente no plano em que o homem vive a vida como luta, tomada a consciência da morte, do envelhecimento, da solidão, das angústias e dos destinos humanos. Quando há indagação, inquietação e conflito, aí entra a literatura. Aliando uma faculdade de observação precisa à quadros íntimos de personagens, André Giusti que é autor experiente com vários títulos publicados, pratica em seus contos aquilo que ensinou o mestre Anton Tchekhov: A unidade básica de modulação e desenvolvimento, buscando sempre um insight, o mergulho existencial, a visão interior que reflete a personalidade e os conflitos de suas criaturas.” … “os contos de Giusti se aprimoram na medida em que o narrador-autor ao introduzir elementos de lirismo, dramaticidade e sugestão, intensifica a revelação, ilumina mais o instante do mergulho existencial e provoca inexoravelmente a empatia com o leitor.” Escrevi isto há sete anos e o reafirmo vigorosamente, e ainda mais uma vez, agora em 2024.

Livro: “As filhas moravam com ele” – Contos de André Giusti, Editora Caos & Letras, Nova Lima – MG, 2023, 136p. ISBN 978-65-80804-28-3

Compre aqui

Dica: O Imperador da América, de Aguinaldo Tadeu

Não é segredo que existe um déficit histórico de conhecimento do brasileiro sobre a história do Brasil.

Certamente esse vácuo foi um dos responsáveis por levar ao poder, em 2018, o mandatário fascista, vendedor de joias e que, agora, também se revela espião.

A ignorância sobre o que foi e passou o Brasil nesses 524 anos talvez possa ser creditada, em parte, à forma monótona e oficial do ensino da história nas escolas, com a reverência à glorificação de heróis que, na verdade, não passaram de verdadeiros tiranos.

Talvez uma das formas de romper com essa chatice seja, por incrível que pareça, usar a ficção.

Exatamente. Literatura para ensinar o que aconteceu de verdade.

É isso que faz Aguinaldo Tadeu em o Imperador da América (Editora Penalux)

De maneira ágil e divertida, ele fantasia em cima de um convite que Pedro Segundo recebeu para ser presidente dos Estados Unidos.
Isto aconteceu de fato, mas talvez não tenha passado de uma brincadeira – ou de um rompante – de algum estadunidense encantado com a figura do nosso segundo imperador (é fato que

Pedro ganhou realmente a admiração dos filhos do Tio Sam no século 19.

Aguinaldo Tadeu, que já havia misturado história e ficção para contar a história da Proclamação da República (ou golpe contra a Monarquia) em A Mulher que Proclamou a República, agora volta colocando Pedro Segundo em histórias divertidas que mostram o lado comum e humano do monarca.

Acho que os professores poderiam aproveitar a oportunidade de ensinar, por meio da fantasia, o que aconteceu de verdade nesse país desde a chegada de Cabral.

A poesia como prece 11: Parangolares, de Aroldo Pereira

Eu tinha dezessete anos quando conheci a poesia de Chacal.

Até então, eu escrevia sonetos. Exatamente, em plena década de oitenta, um adolescente escrevendo sonetos.

Nada contra, mas não era a linguagem da minha geração.

Quando li os poemas de Chacal, com aquela gíria poética, aquele lirismo urbano, aquele clima/ar Rock’n Roll, minha cabeça virou. Minha cabeça e minha poesia. Comecei, então, a construir minha própria linguagem como poeta e, alguns anos mais tarde, como contista.

Pois bem. Eu não fazia ideia de quem era Aroldo Pereira e, muito menos, do que era sua poesia.

Até que, em 2022, ele me convidou para ser homenageado no Psiu Poético, em Montes Claros, o que foi uma de minhas maiores e mais maravilhosas experiências literárias.

Ainda assim, fiquei sem conhecer os poemas de Aroldo Pereira.

Até que uns dois meses atrás, ele veio a Brasília lançar o seu Parangolares.

Li o livro do Aroldo como quem come amendoim tomando cerveja: sem parar, e a cada poema me voltavam à lembrança aqueles tempos em que minha poesia deu uma cambalhota.

Aroldo fazia minha cabeça sem saber que fazia; e eu também não sabia disso.

Até 2023, eu e ele não sabíamos que eu já estava parangolando há quase 40 anos.

Só acho

Roberto Jatahy (Soma) e Alexandre Birman (Arezzo)

Eu acho tão babaca empresário e/ou executivo chamando de players seus iguais.

Hoje mesmo um manda-chuva da Soma diz nos jornais que a fusão da empresa com a Arezzo trará novos players.

Eu acho tão babaca.

Acho que os verdadeiros players são – e sempre foram – os trabalhadores.

Só acho.

Só acho

Acho que entregador de aifudi, ou seja lá qual for a empresa, é um dos aspectos mais latentes de um país miserável, que não dá oportunidade aos mais pobres, e de uma elite que quer ser servida, que não quer ter o trabalho sequer de ir na esquina comprar uma pizza e levar pra casa.

Só acho.

Dica: Espalitando, de Paulo Bono

Acabei de ler Espalitando, do Paulo Bono, nesses primeiros dias de 2024, mas o considero como leitura de 2023, pois comecei em dezembro.

Eu poderia dizer apenas que foi, ao lado de Berro, do Leonardo Almeida Filho, o melhor livro de contos, e um dos melhores no geral, que li no ano passado.

Mas acho que preciso dizer mais.

Paulo Bono escreve do jeito que se deve escrever: sangrando, com as tripas do lado de fora, sem a limpeza monótona e formatada das tais escolas de escrita criativa de hoje em dia.

Ele não carrega as bandeiras que parecem obrigatórias na literatura que tem sido feita nesse país rachado entre o fascismo e a defesa de direitos e conquistas.

Sua bandeira, ele mesmo um cara que deve ser alvo das fobias da discriminação, parece ser geralmente uma: trepar, algo que, aliás, boa parte de quem frequenta rede social precisa fazer com urgência.

A busca de levar uma mulher para cama é o mote de várias histórias, como Quase um ano sem foder, um dos contos mais engraçados que li em toda a minha vida e que me faz passar mal de rir (em outras histórias o riso também é garantido).

Mas essa procura não é o único embate de Espalitando.

Os contos de Bono iluminam personagens derrotados e fracassados que nos fazem pensar o quanto somos iguais a eles em diversos momentos de nossas vidas (por isso saboreamos tantos as vitórias e as conquistas), sempre com uma linguagem direta e diálogos fortes, recheados de palavrões que, muito bem empregados, não são linguagem chula, mas sim necessária.

Paulo Bono escreve sem compromisso além daquele que o faz se sentir em paz com o que escreve e consigo próprio.

Em outras palavras, ele toca o foda-se e não quer passar de bonzinho, limpinho e engajado.

E eu toco o foda-se pra dizer que gostei pra caralho.

Rolar para cima