Grandes crianças mimadas

Eu não vi a partida de estreia da Seleção com as minhas filhas, mas soube que a do meio, ao ouvir a Dilma ser xingada pro mundo inteiro ouvir, perguntou à mãe: do que essas pessoas estão reclamando? Elas não têm casa, comida, roupa, escola boa, carro novo?

Ontem, arrumei um jeito de explicar pra ela como se comporta nossa elite, há mais de 500 anos. “É que gente mimada, filha, se você dá batata frita, quer sorvete; se você dá sorvete, quer chocolate; se dá chocolate, quer biscoito; e nunca olha pro lado pra ver que tem gente que nunca provou o gosto da batata frita, do sorvete, do chocolate e do biscoito”.

mimada

Sobre palavrões e bermuda furada na bunda

1.Nelson Rodrigues dizia que, no estádio, brasileiro vaia até minuto de silêncio.

Muito bem. Mas pense se, quando há visitas em casa, você se comporta do mesmo jeito que quando está sozinho ou apenas com seu irmão, sua mulher, seu marido. Você usa na frente das visitas aquela bermuda furada na bunda? Arrota na frente delas igual a quando está apenas na frente de pai e mãe?

As vaias quando a seleção da Croácia entrou em campo para o aquecimento foram apenas o aperitivo da falta de educação da torcida de um país que, como sede do evento esportivo do ano, é simplesmente o anfitrião, e que deve ser, no mínimo, educado com seus convidados. Vaiar a Croácia foi como a pessoa que recebe em casa de cara amarrada, não convida pra sentar, não oferece um café nem um copo d’água.

Deixemos as vaias para os embates domésticos e que ela tempere, com todo o gosto que tem, apenas nossas diferenças clubísticas, pois o universo de uma Copa do Mundo é um pouquinho maior do que o do campeonato paulista, carioca, mineiro, gaúcho. Ou vamos mesmo receber as visitas de bermuda furada na bunda?

2. A abertura insossa e apática da Copa não mostrou o que é o país, e aquela estética industrializada de Cláudia Leite não passou nem perto da variedade sonora e rítmica de nossa música.

Acho que quem abriu verdadeiramente a Copa foi a torcida cantando o Hino Nacional. Foi de arrepiar.

Assim como foi de envergonhar o xingamento à Presidenta da República. É como se, além de usarmos a bermuda furada na bunda quando há visitas em casa, xingássemos também pai, mãe e irmão na frente delas.

Quer mandar a Dilma tomar lá onde a pata toma? Ou o Aécio? Ou o Eduardo Campos e a Marina? Faça isso no voto, em outubro, e depois cobre ética e respeito das autoridades.

3. Gostaria de entender como alguém compra um ingresso caro, vai ao jogo de abertura e manda a Fifa tomar no mesmo lugar que mandou a Dilma. Ora, por causa de quem as pessoas que xingaram estavam lá? Acho que não foi por causa da Cruz Vermelha.

maleducado

o amor de unhas e dentes

enterra tuas unhas em meu peito nu

do modo que os toureiros cravam lanças nos touros vencidos.

quero, um a um, contar os lanhos em minha carne

no dia seguinte, em frente ao espelho,

ao me vestir para trabalhar.

trinca teus dentes em meu rosto

feito draga no lodo,

faz como se quisesse levar um pedaço cheio da minha barba.

quero a delícia de me arderem na cara os sulcos avermelhados

quando eu me enfiar no chuveiro de manhã,

depois que você for embora.

me encharca com teus beijos: que tua saliva fique em minha pele feito perfume que pega na roupa.

puxa-me pelos cabelos e me leva a boca pro teu meio que em fogo brasa pimenta mordida arde na noite secreta do quarto.

quero que minhas narinas guardem pelas horas monótonas do expediente o cheiro do teu sexo e que ele resista imaginário ao banho da noite.

Unhas

 

A lição de Eduardo e Maurício

Dudu

 

Maur~icio

Em dois dias, duas mortes prematuras, duas pessoas que tiveram interrompido o pleno exercício da vida, quando esta chegava ao auge.

Na sexta-feira, Eduardo de Carvalho Vianna perdeu a breve luta contra o câncer. No dia seguinte, um problema cardíaco levou Maurício Torres. Os dois, jornalistas. O primeiro, uma espécie de contraparente meu. O segundo, companheiro de trabalho na minha pré-história profissional. A morte dos dois nos tirou o tapete, como sempre faz quando chega por volta dos 20, 30, 40 anos de uma pessoa querida.

No primeiro caso, escuto o lamento de alguém próximo a ele. Triste, abalado, se arrepende das vezes que teve vontade, mas não entrou em contato com o Eduardo, chora pelas mensagens dele que não respondeu, ou o fez de forma rápida, sem a merecida atenção. A partida do Maurício também deve ter suscitado a mesma reação em um ou outro amigo.

Eduardo e Maurício partiram, mas me deixaram uma lição que outros que se foram antes do que imaginamos ser a hora já haviam me deixado, mas que eu nem sempre aplico na relação com as pessoas queridas.

Deu vontade, liga. Recebeu mensagem, responde na hora. Ficaram de se encontrar, marquem mesmo, na casa de um ou do outro, no bar mais próximo, o quanto antes. Mesmo que você acredite na vida após a morte, é bom demonstrar (e receber) amor e carinho enquanto somos de carne e osso, antes de retornarmos ao nosso vagar pelo cosmos, em alguns casos, de maneira antecipada.

Claro, vamos acreditar que viveremos muito, vamos ser otimistas que morreremos velhos contando piadas uns aos outros, mas vamos nos falar mais, nos permitir mais.

É só para nos prevenirmos contra o remorso e o arrependimento nos casos de câncer e infarto, por exemplo.

Certos tipos

Que sujeito esquisito que, em estando na sala de espera do consultório ou na fila do cartório, lê livros em vez de ver mensagens no celular.

esquisito

Pacotes

Preste atenção quando aponto estrelas acesas feito lâmpadas fracas além do nada da cidade nervosa. Costumo pensar que elas deixaram de existir há milhões de anos.

Eu gosto de mostrar na rua automóveis antigos, aqueles em que as famílias sumidas nos retratos esmaecidos pegavam as estradas aos domingos descendo a serra ou voltando da praia.

Escute bem quando eu te falar das portas e janelas dos casarios do século 18. Por elas – note bem, eu tenho certeza – até hoje passam comendadores tiranos e suspiram moças pelo amor que lhes proibiram.

Me encantam ainda os azulejos formando painéis nos jardins das casas de subúrbio. É lá que ainda nossos pais e tias conversam sobre assuntos que não nos interessavam.

Gosto também de imaginar um lampião antigo iluminando esquinas desertas na madrugada e te contar que debaixo dele um bêbado maldito resmunga arranhando o silêncio das almas.

Escute bem quando eu disser sobre as bandas de rock e seus épicos discos de vinil que comprei lá por mil novecentos e oitenta e tanto, dos velhos cantores negros de blues que me ensinaram a sorver a vida feito um trago quente de conhaque.

Gosto de te contar de poetas ou pintores que morreram tísicos pobres esquecidos sem reconhecimento e amor nos quartos mofados dos asilos públicos.

Portanto, preste atenção nessas histórias inúteis sem aplicação alguma na vida prática, que não alteram em nada o movimento dos aeroportos nem mexem no lucro das bolsas.

Fique atenta, pois quando te falo de tudo isso estou te entregando pequenos pacotes de mim, envelopes abertos com minha loucura e pouco a pouco confessando que te amo.

Pacotes

O risco de ver a lua cheia

Quando parou pela última vez para reabastecer, já passavam das quatro da tarde. E ainda faltavam umas cinco horas de viagem.

Enquanto corriam os números no visor da bomba, ele decidia: ou encarava a estrada à noite para cumprir o plano inicial de chegar no mesmo dia, ou fazia o recuo estratégico, e na manhã seguinte – corpo descansado, banho e café – seguia com mais segurança e disposição.

Ou a noite na estrada com seus mistérios, riscos e surpresas em aberto, tais como caminhoneiros à base de rebite, ou a mesma noite que seria outra se optasse por um hotel honesto, com a segurança da cama e o conforto do banho quente.

Escutou a si mesmo apesar do barulho dos caminhões que estacionavam no posto. Passando o cartão para pagar, ouviu-se dizendo que queria chegar e dormir em sua cama, sentir a água do chuveiro que conhecia, tomar do vinho que o esperava.

Acendeu os faróis, acelerou e aumentou os Stones, que embalavam a viagem desde a última parada: “I was born in a crossfire hurricane”.

Optou mesmo pelo risco que o levaria à satisfação. Deixou no acostamento a cautela acomodada.

Foi assim que já na primeira curva da noite percebeu, por trás de uma montanha, um clarão amarelando o céu azul escuro. Era a lua, em seu primeiro dia de cheia, plena, dona das estradas do céu e da terra. Ficou difícil dirigir, conciliar a tangência das curvas com o olhar querendo escapar pela janela e se perder nas alturas. Ela o acompanhou a viagem inteira. E aquela imagem, certamente, fará o mesmo até o fim da vida.

Mais tarde, já na madrugada alta da cidade, observava o efeito da luz do abajur transpassando a última taça cheia de vinho e pensava que mesmo o que se anuncia racional, ponderado, seguro poderá reservar riscos e desilusões. O hotel poderia ter pulgas, o chuveiro elétrico não aquecer a água, a cama dura esfarelar suas costas. A acomodação, assim como o risco, também pode trazer sua fatura algum dia.

E optando por ela, quantas vezes permaneceremos mal casados, infelizes no emprego e sem nunca termos visto a lua cheia nascer na estrada.

Lua cheia na estrada

 

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