Começaria tudo outra vez, se preciso fosse

Recebi o release e tratei de escrever rápido para impressionar o chefe. Depois, colei o ouvido no rádio para escutar meu primeiro produto jornalístico: uma notinha sobre a programação cultural do Centro Calouste Golbenkian, na Praça 11, no Rio.

Era 31 de agosto de 1987, meu primeiro dia de estágio na Rádio Estácio FM, que pertencia à atual Universidade Estácio de Sá, onde eu cursava jornalismo. Pelo estágio, o meu primeiro, ganhei uma bolsa de estudos.

Mesmo que ali eu fosse um estagiário totalmente cru, considero esse dia o início de minha vida profissional. Portanto, estou fazendo 25 anos de jornalismo.

Cabe, aqui, a velha frase: se me fosse permitido voltar no tempo, não escolheria outra profissão.

O deslumbramento do início foi gastando com os anos (nada que seja privilégio do jornalismo). Diversas vezes entrei em crise profissional. Por causa disso, como tantos outros, sonhei em ser dono de pousada na serra e tentei virar funcionário público. Felizmente a vida sempre me levou para o que eu, definitivamente, gosto e sei fazer: produzir e escrever notícia, mesmo que eu não seja totalmente realizado. E desconfio de quem diz, em qualquer ofício, que o é. Soa-me falso.

O jornalismo não me deu apenas o ganha-pão, um nome projetado ou a chance de ver ao vivo a história acontecer (meninos, eu cobri a queda do Collor e a posse do Lula!). O jornalismo ajudou a modelar o meu caráter, consolidou ou desfez convicções, limpou minhas vistas para bem enxergar a realidade.

Jamais esquecerei o dia em que saí de casa para trabalhar de mal com o mundo, irritado com o salário baixo que não me deixava ter carro. Naquele dia, na porta de uma delegacia em rebelião, vi uma mulher com a filha pequena no colo recolher do lixo a comida que os presos jogaram fora. A escória também tinha uma subclasse e eu não sabia. O que eu era ali? Um babaca reclamando sem motivo da vida. Não fosse a vivência na reportagem, não teria recebido essa e outras lições.

Mesmo com os interesses empresariais de meus ex-patrões, jamais produzi algo que não contivesse exclusivamente o interesse público. Nada que fiz, em todo esse tempo, foi ao ar (sou um cara de mídia eletrônica) carregando algum interesse particular meu, por menor que fosse. Nunca entrevistei ninguém em troca de nada. Ganhei convites e presentes, e tantas vezes não entrevistei quem me ofereceu. Entrevistei centenas de pessoas de diversos ramos, que sequer me deram um muito obrigado. Tudo porque meu critério sempre foi: é notícia? é importante? então, ok, vamos fazer! Nada além disso para balizar um assunto.

A consequência desse comportamento é um carro com cinco anos de uso, um apartamento num prédio sem elevador e roupas mais ou menos, compradas à prestação.

E também uma consciência tranquila que me deixa olhar nos olhos minhas filhas e dormir a noite inteira.

Tios

É sucinta a frase que chega pelo celular depois do almoço: nossa tia faleceu, oremos por ela.

Mesmo que se acumulem anos desde a última vez que vimos quem acaba de pegar o túnel misterioso da morte, a notícia sempre vem embrulhada em papel de impacto. Fica, então, suspensa nessa tarde seca e quente, de ar parado, de poucas sombras e árvores paralisadas. Só aos poucos vai se dissolvendo no entendimento, reassumindo sua função de comunicar o único algo que nessa vida é inevitável: morrer.

Tios que morreram ou que se vão morrendo são na verdade sinais de que o tempo é mesmo, como muitos deles nos diziam, essa água impossível de se segurar nas mãos. Passar, para ele (o tempo), é verbo que lhe dá sentido, tanto quanto é o chegar para a morte. É por isso que a cada tio que se vai, creiam, é um pouco mais que envelhecemos.

Tios, quando se vão, levam definitivamente uma parte de nossas vidas, aquela que nós nem nos dávamos conta de que eles guardavam feito ferramentas em desuso, botões de roupas fora de moda. E o conhecimento disso nos é dado apenas e exatamente no instante em que nos chega a notícia da morte de um deles.

Mesmo crescidos, mas com eles ainda entre nós, sem que percebamos, de certa forma nossa infância e adolescência persistem em algum lugar do espaço, como se o passado fosse acontecimento paralelo ao presente de angústias e sonhos no futuro. Com os tios vivos, nosso passado é uma lâmpada que esqueceram acesa no sótão onde ninguém sobe. Na verdade, enquanto os tios não morrem, não se encerra aquela noite em que ficamos na casa deles para que nossos pais fossem a um baile de gala; muito menos passa de vez a manhã agitada em que nasceu nosso irmão caçula, quando também se encarregaram de nós.

É somente quando se vão desse mundo os tios , que realmente nos deixam na totalidade essas partes encantadas de nossas vidas, que resistiam semivivas sem nosso conhecimento. Apenas aí é que elas começam a se tornar lembranças esmaecidas, como aliás, no geral, passam a ser, quando vamos envelhecendo, todas as coisas que tínhamos nítidas na cabeça.

O mecânico e o ministro do STF

A primeira vista nada há de comum entre um mecânico e um ministro do Supremo Tribunal Federal.

O que os liga é a impossibilidade de argumentar com eles sobre o ofício que exercem.

Não conheço de mecânica, menos ainda sei avaliar a consistência ou a falta de provas para incriminar alguém.

Se um sujeito com o macacão e as mãos sujas de graxa me diz que preciso trocar determinada peça inclusive para a minha segurança, não tenho como contestá-lo. E mesmo que ele me mostre a peça e eu tenha a nítida impressão de que ela está nova em folha, não terei base técnica para dizer que ele está errado e quer me passar a perna. Posso até não querer trocá-la, mas aí assumirei o risco que existe na hipótese de ele estar correto. E sendo honesto.

Se um ministro do STF, de conhecimento aprumado pelos longos anos da prática jurídica, diz que alguém é inocente por que não há provas contra, que poder possuo eu, cidadão, eleitor, contribuinte, de contestá-lo?

Não posso discutir com um mecânico nem com um ministro do STF pela simples ausência de embasamento.

Mas posso ficar desconfiado do que dizem.

E no caso do mecânico, procurar outro.

Um século de incômodo e talento

Não acredito na arte que não provoque, ao menos em um pequeno momento, certo incômodo.

Música, pintura, artes plásticas, literatura servem para expandir os sonhos, fazer-nos pausar da realidade, exprimir pontos de vista, mas são também instrumentos de reflexão. E isso pode incomodar, e aí estará uma das funções da arte.

Quem escreve não pode fugir ao dever de incomodar. Incomodar todos os lados, diga-se de passagem. Se quem escreve sempre consegue, no sentido da unanimidade, concordância de um dos lados, desconfie do que lê, pois deve haver algo errado com quem escreve.

Nelson Rodrigues, que faria 100 anos nesta quinta-feira, escandalizou a direita porque desencavava a lama apodrecida dos “bons costumes” da classe – média. Expunha o nervo hipócrita da vidinha requentada da classe média, escravizada e oprimida pelos padrões do senso comum. Padrões da aristocracia, da Igreja, do machismo. Padrões dos poderosos.

Era odiado pela esquerda por que talvez enxergasse as imbecilidades e as fraquezas de conduta nas correntes que a vida toda quiseram nos fazer acreditar que só arregimentavam santos e anjos salvadores.

Provavelmente nosso maior frasista, não era panfletário de nenhuma ideia, muito menos ideologia. E como poderia ser, se incomodava tanto?

Por isso, e por fazê-lo com extremo talento, não tornou-se a unanimidade – burra, em sua opinião – , mas em seu centenário, está se eternizando.

Gosto e talento

Fico sabendo que em sua participação semanal em uma rádio de notícias, o jornalista e escritor Ruy Castro disse que jamais alguém fez música boa na Inglaterra.

O comentário foi referência ao encerramento das Olimpíadas, no último domingo. Com isso, Ruy Castro desconsidera qualquer valor musical nos Beatles, nos Stones, no Led Zeppellin, no Pink Floyd, para citar apenas as quatro bandas mais famosas da terra da rainha.

Penso que não gostar é bem diferente de não reconhecer talento. É possível as duas coisas estarem dissociadas, serem distintas? Acho perfeitamente cabível, o que parece não ser o caso do Ruy. Ao que tudo indica, se ele não gosta, não presta.

Não gosto, nunca gostei de samba. Não gosto, nunca gostei de Chico Buarque. Idem Bossa Nova.

E aí, por isso, saio pregando que Cartola, Paulinho da Viola, João Gilberto não têm valor? Que no Brasil nunca se fez música boa?

Uma coisa é ser tocado de diversas formas por um gênero musical, entre elas – e principalmente – sua estética; outra é reconhecer o talento de quem faz.

Chico têm valor, talento? Sim, muito. Tocam-me suas músicas? Não, não me identifico com elas, não traduzem o que penso e o que sinto.

Ruy Castro é um grande escritor? Sim, ótimo! Gosto de suas biografias? Adoro! E sugiro que, em vez de falar de música, ele escolha mais uma pessoa famosa e interessante para escrever sobre a vida dela.

Me perdoa, Celso Blues Boy!

Na Folha de São Paulo de hoje, André Barcinski escreve que “Muita gente, especialmente no Rio de Janeiro, começou a ouvir rock e blues vendo Celso Blues Boy no Circo Voador”.

Certamente é meu caso, mesmo que Celso não tenha sido a única fonte a me apresentar os dois gêneros que, quanto mais passa o tempo, mais ocupam meus ouvidos.

Posso dizer que Celso Blues Boy solidificou meu gosto pelo irresistível “esporro” das guitarras. Ele é uma das lembranças que tenho dos primeiros tempos de ouvinte da Fluminense FM (Maldita!), outro manancial de conhecimentos sobre Rock’n Roll e Blues.

Aos 17 anos cometi, quem sabe, meu maior pecado discográfico. Troquei meu vinil ‘Som na Guitarra’, o primeiro disco do garoto ‘brazilian blues’ por outro vinil…do Kid Abelha. A irracionalidade tem explicação, mas não justificativa. Eu estava apaixonado por uma normalista com que dancei numa festa, embalado pela voz sempre duvidosa de Paula Toller. Se homens apaixonados são naturalmente afeitos a asneiras, que dirá com 17 anos.

A garota, esqueci pouco mais de uma semana depois. O vinil do Kid Abelha entreguei num sebo logo no início da invasão dos CD’s, nos anos 90. E o disco de Celso Blues Boy ficou apenas na lembrança.

Ontem, tocado pela morte do guitarrista, procurei o disco na Istore, mas os súditos de Steve Jobs ainda não se deram conta da importância de Celso Blues Boy para o gênero no país. No site das Lojas Americanas, o único disco dele é um gravado ao vivo, e está esgotado.

Celso, onde você estiver agora, me perdoa!

E que a vida me traga de novo o teu disco!

Pela primeira vez na vida eu quis ser um pitiboy

Os servidores federais permanecem de braços cruzados, no justo e constitucional direito de greve, de lutar por melhores salários e condições de trabalho.

Mas se a greve faz parte da democracia – e realmente faz – as práticas da greve também devem observar o respeito ao semelhante. Da mesma forma, isso é democrático.

Hoje pela manhã, dois integrantes do comando de greve, em Brasília, tocavam, sem trégua, na porta de um dos ministérios, aquelas cornetas que ganharam o mundo na copa da África do Sul. Era como se dois caminhões estivessem estacionados na portaria e buzinando sem parar.

Meus tímpanos quase não suportaram as cornetadas nos breves quarenta segundo que precisei para atravessar a barulheira ensurdecedora.

Dessa forma, não há como se considerar a justiça do movimento. Com essas impiedosas buzinas, o que nos vem à cabeça é a falta de respeito, e mesmo misericórdia, dos líderes do movimento para com as pessoas que trabalham na portaria dos ministérios, e que são muitas. Observei que uma delas estava quase chorando de dor nos ouvidos, completamente atordoada, sem qualquer concentração no que acontecia a sua volta, principalmente no seu trabalho.

Desejei, sinceramente, no fundo de meus instintos mais humanamente enviesados, ser um daqueles grotescos pitiboys que arrebentam metade do mundo com uma das mãos. A outra metade desaparece com o golpe da outra mão. Pelo tempo em que fiquei exposto àquele desvario, quis, de todo o coração, fazer os “companheiros” engolirem aquelas buzinas. De preferência, com elas tocando.

A raiva já passou, embora persista o zumbido em meus ouvidos. Se desejo que a categoria consiga, ao menos em parte, o que está reivindicando, confesso que, do fundo de meus sentimentos inferiores, não há como não querer que os corneteiros estejam surdos depois que a greve acabar.

A recompensa

Há três meses, desde a Bienal do Livro de Brasília, venho “esquecendo” exemplares de meus livros em locais públicos.

Largo exemplares em cafés, bares, pontos de ônibus, aeroporto, shopping-center. Qualquer um que passe em local de movimento é leitor em potencial de um livro meu abandonado.

Na contracapa, colo uma etiqueta avisando que quem encontrar deverá fazer o mesmo depois de ler. A brincadeira, que não é minha nem é nova, é uma forma de fazer o livro circular em um país que certamente possui mais agências de automóveis do que livrarias.

Isso tem me feito viver experiências interessantes.

Hoje um exemplar foi resgatado por um sujeito calçando chinelo de dedo, bermuda e camisa de um time de futebol. Ele pegou o livro e começou a folhear. Para isso, colocou debaixo do braço o jornal popular que trazia (sim, colegas autores, há muitos leitores além dos que viajam de avião e assinam a Folha de São Paulo).

Foi do início ao final do livro e voltou. Deteve-se no início e começou a leitura. Embarcamos juntos no mesmo ônibus, eu tendo o cuidado de sentar dois bancos atrás para poder observá-lo. Meu trajeto de casa ao trabalho dura quinze minutos, e foram quinze minutos em que pude atestar a fidelidade de um leitor. Ele não desgrudou os olhos de meu livro, nem os solavancos do ônibus foram capazes de lhe roubar a atenção. Se continuou naquele ritmo, a essa altura já deve estar próximo das últimas páginas.

Desci do ônibus com a vontade recompensadora de persistir e continuar escrevendo para todos, sejam os que vão de ônibus, carro, a pé, avião ou bicicleta, mas que em comum têm o livro a mover pensamento e imaginação.

Rolar para cima