Estátua de açúcar

A imprensa tradicional, principalmente os chamados jornalões, parece que ainda não acordou para a realidade: ela não é mais a única fonte de informação nem a única fomentadora do debate público.

Mas continua achando que é, e insiste estampar nas primeiras páginas, como se fosse de interesse geral, assuntos afetos a seu umbigo.

Em nada mudou meu dia a manchete da Folha informando que FHC acha Dilma ingrata. Almocei no mesmo lugar, vou dormir na mesma cama, receberei o mesmo salário.

Com a mesma certeza de que escrevem com alguma pertinência prática para nossas vidas diárias, colunistas de política lançam notas que, na verdade, são apenas satisfações aos que lhes dão informações. Servem aos donos do poder, não no sentido de governo e oposição, mas no daqueles cujas ações estão secularmente voltadas para o que é de seus próprios interesses.

Diante dos novos tempos, principalmente os jornais parecem deter a mobilidade de uma estátua. Iniciam as reportagens com fatos que já são conhecidos pelo público desde a tarde do dia anterior.

Mas em vez de a imprensa parar para pensar no que está fazendo – ou deixando de fazer – e se reinventar, volte e meia o que acontece é algum figurão que preenche longas e enfadonhas colunas nos velhos jornais vir a público atacar o conteúdo produzido na internet, principalmente nas mídias sociais (que, como todo conteúdo, também não é 100% pertinente).

Parece mesmo um sinal de que a estátua é de açúcar e está tendo os pés comidos pelas formigas.

Barão perfeito

Perfeição causa espanto por que não se encontra a toda hora.

Um carro esportivo italiano, um vinho francês, um escritor como Gabo. Uma banda de rock brasileira com 30 anos de estrada.

O Barão Vermelho sabe exatamente o que faz, e faz com tanta perfeição que às vezes nem dá vontade de dançar, mas ficar quieto no show, observando-o tocar, sacudir a própria Terra e o resto da galáxia.

Não fosse a perfeição, seria a alegria de ser uma banda de Rock’n Roll autêntico, sem arranjos moderninhos e chatinhos, sem letras em espanhol. Alegria de tocar músicas perdidas na voz de Cazuza no primeiro disco. Ei, geração Z! Você sabia que o Cazuza era o vocalista do Barão no início? Aliás, geração Z, você sabe quem foi o Cazuza?

O chamado BR Rock teve quatro bandas realmente grandes, sendo que, além do Barão, outras duas estão ainda em atividade. A quarta não teria sentido existir sem Renato Russo.

A diferença é que os Paralamas e os Titãs não empolgam mais, e precisam, muitas vezes, se apresentar juntos para ver se em dupla conseguem ser um. O Barão, sozinho, tem a pegada de cinco, seis, oito.

Se fossem pessoas, por exemplo, homens de meia idade, Paralamas e Titãs seriam flácidos, barrigudos, sedentários. O Barão seria o tio sarado, que se alimenta bem, vai pra academia todo dia e pega menininha.

Machado e Assis não é mundialmente famoso porque escreveu em português. É o caso do Barão. É impensável, para o mundo, Rock’n Roll na língua de Camões. Não fosse isso, e colocássemos lado a lado o Barão e essas bandas estrangeiras contemporâneas, insípidas na sua maioria, não ia ter pros gringos não.

O chique de ser ateu

Percebo certo destaque quando se fala ou escreve sobre José Saramago para o fato de ele não acreditar em Deus. Pode ser impressão minha, mas há uma inclinação em ressaltar o ateísmo como algo que reforce a intelectualidade de determinada pessoa.

Não me parece que Frei Betto, por exemplo, tenha menor capacidade intelectual do que Saramago, mas há muito artigo, resenha ou ensaio sobre variados temas que, sutilmente, querem nos levar a crer que o intelectualmente chique precisa ser ateu. Acho que isso se acentuou com a crise declarada na Igreja Católica pela renúncia do Papa.

É mesmo difícil para a inteligentzia mundial aceitar o Deus tirano e vingativo que nos fizeram engolir durante séculos. Mas inteligência e cultura oferecem sempre instrumentos para se pensar em possibilidades diversas. Uma delas é a de um Deus que não aja como feitor de escravos. A outra é admitir (e aceitar) a própria dificuldade em se explicar Deus. Mas talvez neste ponto entre a soberba de certos intelectuais: o que eles não conseguem explicar, simplesmente não existe.

O fato é que me parece rasteiro diminuir o valor de um intelectual que declara fé em Deus ou em outra entidade. É como decidir que um ateu não possa ser pessoa piedosa, fraterna e solidária, o que, aliás, deve ser o mais importante para Deus, no caso de ele existir realmente.   

Pedir socorro sem pedir

Uma das frases mais famosas de Aparício Torelly, o Barão de Itararé, diz que “De onde menos se espera, de lá é que não sai nada mesmo”. Diversas vezes comprovei a assertividade da teoria de Aparício. Só quem nem tudo é absoluto, principalmente quando envolve pessoas.

Existem aquelas que, pela convivência e amizade, sabemos que estarão lá, nos estendendo a mão em momentos de dificuldade, e que nos enxergarão por dentro apenas olhando em nossos olhos, ouvindo nossa voz ao telefone.

Pelo menos em tese.

O problema é que a vida atual se amontoa de tal forma que pode muito bem impedir nossa percepção em relação ao outro, mesmo que esse outro seja aquele cúmplice de tantas épocas, aquele que, apesar do sangue diferente, é irmão ou irmã.

Quem sabe ainda muitos anos de amizade cristalizem a máxima do “ele sabe que pode contar comigo sempre, é só me chamar que eu vou”. Só que nem sempre o outro chama, às vezes quer ser descoberto em seu silêncio. Ou em seus olhos e voz. E aí o grande amigo não se faz presente quando mais precisávamos, porque não reparou que pedíamos socorro sem pedir.

Mas a vida também gosta da arte da compensação, e abre caminhos para que nos aproximemos, em horas doloridas, de pessoas que são no máximo boas colegas. E por alguma razão desconhecida, essas pessoas pegam e te ouvem, te entendem os olhos e a voz, te chamam pra sair porque sacam que você não pode ficar sozinho em casa, e se você quiser chorar, surpreendentemente te deixam à vontade para isso e te oferecem o ombro.

Agradeçamos, então, esses ombros, que apesar da pouca proximidade, fizeram-se providencialmente íntimos para o nosso consolo, nosso desabafo. Nos tornemos atentos a eles, a suas querências de desabafar e ser consolados.

Quanto aos amigos de sempre e de toda a vida, é necessário considerar também se sempre, e absolutamente sempre, percebemos que seus olhos estavam vazios e suas vozes aflitas.

Jabuti não sobe em árvore

Ok, você me encaminha um abaixo assinado para tirar Renan Calheiros da presidência do Senado. Concordo, também não o quero nem para presidente de clube de truco.

Mas, antes de assinarmos, vamos parar de dar dinheiro ao guarda para ele aliviar a multa, e de estacionarmos na vaga do deficiente e do idoso, que, se não envolve dinheiro, é também  forma de corrupção, pois corrompe o direito do próximo.

Da mesma forma, vamos deixar que as grávidas e, outra vez, os deficientes e os idosos, sentem nos assentos preferenciais do metrô e do ônibus. Não vamos fingir que estamos dormindo quando eles entram.

Vamos recolher o cocô do cachorro da calçada e respeitar a lei do silêncio no prédio.

Vamos parar de tirar carteira de estudante para pagar meia entrada, se há muitos anos não passamos nem perto de uma sala de aula.

Vamos voltar de táxi ou de carona se bebermos.

Vamos parar de comprar gabarito de concurso público.

Vamos parar de fazer gato na luz, na TV a cabo.

Vamos parar de colocar bolsas e embrulhos para guardarmos lugar no restaurante self service enquanto vamos nos servir, porque, certamente, há alguém que chegou antes de nós, não marcou lugar, e está com cara de bobo procurando onde sentar.

Vamos parar de tomar cerveja na fila da caixa do supermercado e deixarmos a garrafa vazia jogada no canto para não passá-la na leitora ótica.

Amigo(a), jabuti não sobe em árvore, alguém o colocou lá.

Se o Renan, ou qualquer outro é senador, não chegou lá sozinho.

Pense nisso e, se tiver segurança, mande o abaixo assinado.

Não à “bundizização”

É compreensível que não dê para falar de carnaval na TV se não for com alegria. A cobertura da festa precisa mesmo aproximar o público do clima do espetáculo. Natural e, portanto, nada contra que uma matéria sobre o tema tenha não só alegria, mas ainda descontração e irreverência.

Só que alegria, para os meios de comunicação nesse país, tem se “fantasiado” cada vez mais de imbecilização.

Assisto à matéria sobre umas tais musas do carnaval de Brasília. No geral, as imagens não foram além de umas sambadinhas e do corpo escultural das três eleitas (aliás, por quem?).

Não me lembro das beldades terem dito, nas entrevistas, algo diferente do que fazem para manter aqueles corpanzis dignos dos mais sumários biquínis. Uma delas afirmou, com a mesma naturalidade com que samba, que nesta época do ano sua grande preocupação é mesmo a bunda. Sim, é em função dela – a bunda – que a menina vive esses dias pré-momescos.

E esse foi o grande momento da matéria, o principal da notícia, o lead, como reza o jargão jornalístico

Claro, a culpa não é dela, ou pelo menos não somente dela. Boas entrevistas, ou mesmo apenas boas declarações, surgem muitas vezes por causa de boas perguntas e boas pautas, boas ideias para uma reportagem.

Não estou exigindo discurso politizado ou de elevada consciência social na cobertura da folia. Apenas não quero que tratem a minha inteligência feito uma imensa e bela bunda, que, na TV, só serve para ser consumida nos desfiles e descartada na quarta-feira de cinzas.

Neste carnaval, viva o imutável!

Anos atrás foi lançado um CD de algumas músicas dos Beatles com arranjos de chorinho.

A crítica desceu o pau. Nem precisava tanto para que eu não comprasse. Betleamaníaco e admirador de chorinho, nunca consegui enxergar casamento entre o ritmo que consagrou Pixinguinha e a música imortal dos quatro de Liverpool.

Tal feito comida, algumas genialidades não se deve misturar. Adoro feijão; amo espaguete. Em pratos separados, em dias diferentes.

Gosto de mudanças, defendo inovações, busco novidades, mas nem sempre esses movimentos significam acerto. Às vezes, deixar como está, como sempre foi, é melhor, inclusive para o bom gosto, para a qualidade do produto final.

Escrevo porque li que o um bloco de carnaval em São Paulo cismou de tocar Nirvana.

Não ouvi. Nem quero. Espero ter os ouvidos poupados.

Meu grito de carnaval hoje é: viva o imutável!

Rolar para cima