Rubem Braga*, meu mestre.

Há muito tempo eu não me encontrava com você. E hoje, por um  desses desvios que a vida nos dá de presente como remanso da rotina, abri um de seus livros numa de suas histórias* mais preciosas.

Era um lugar em que o sol da manhã brincava de recortes com jaqueiras, jequitibás e mangueiras, e de uma a outra, em voos largos, outros breves, o bem-te-vi, o sanhaço e o joão-de-barro cumpriam a tarefa da polinização, ameaçada pelo bicho homem e seu desprezo pelas árvores.

Cantavam os pássaros. Creio eu que me contavam sobre você: ah, esses nos conhecia, pelo canto e pelo voo de acordo com o vento. Foi o que supus, não entendo a linguagem deles, essa ciência era seu domínio, um de seus ingredientes para transformar o corriqueiro em magnífico.

Pois sentado com o livro entre as mãos emocionadas, eu parecia aquele sobrinho que ouve o velho tio depois de ter ido correr mundo e voltado sabendo que o mundo é bem diferente daquele que estava nos meus planos. Ao redor havia o vento nas folhagens e a insistência dos pássaros, agora em outro assunto. Lembravam-me que a simplicidade é coroa da beleza, e que esta de nada mais precisa para ser o que é. Advinha nos livros de quem aprendi isso!

Eu tinha doze anos quando fui apresentado a eles. Só mesmo um mestre de muito talento para caputar a cabeça de um garoto para quem a importância da vida não ia além do time de botão, do campeonato de futebol e das primeiras meninas. Hoje, lendo na maturidade suas crônicas – ou será que poemas com outra roupa? -, noto que você é bem melhor do que quando eu tinha certeza de que você era ótimo. É como se eu voltasse pelo mesmo caminho, mas agora reparando na pitangueira que não percebi na ida, ou no casebre distante que me fugiu porque estava olhando para o lado oposto. Acho que a vida se apiedará de mim outras vezes, e me ofertará alguns outros remansos na rotina antes que eu vire sopro no infinito. Aí faço de novo o caminho e conto o que descobri a mais.

* Rubem Braga é considerado o maior cronista brasileiro depois de Machado de Assis. Ele morreu em dezembro de 1990, aos 77 anos.

* A casa dos homens (do livro O verão e as mulheres).

A opressão dos comerciais em tempo de Copa do Mundo.

Tempos atrás, no tuíter, alguém escreveu que ficava enjoado dos grandes eventos antes mesmo de eles começarem. Referia-se a Olimpíadas, Copa do Mundo e outros de porte semelhante que arrastam para nossas casas a massificação impiedosa da publicidade dos produtos que bancam nas TVs a transmissão dessas competições. E o motivo do fastio era esse mesmo, a invasão da vida e do mundo irreais da propaganda, algo elevado a quinta potência quando se está às vésperas de um campoenato mundial de seleções.

Quando eu era mais jovem, as semanas que antecediam uma Copa do Mundo, por exemplo, eram de excitação plena por tudo que envolvesse a disputa, inclusive os anúncios no rádio e na TV. Hoje, também provavelmente por causa da cacetice da idade adulta, mas ainda pela possibilidade da propaganda ser mais agressiva e incisiva, antes que comecem, esses mega eventos já enchem as bacias da minha paciência.

O que me satura não é somente o excesso de anúncios com o viés da Copa – de bala juquinha a viagens à lua, se existissem – mas o conteúdo desses comerciais. Além dos cada dia mais banais e sem graça anúncios em que os argentinos são ridicularizados, há os que me fazem pensar se o país em que vivo é o mesmo da OI, do Itaú e da Visa.

Reparem como são felizes e estão sempre satisfeitas as caras que aparecem falando ao celular, abrindo uma conta ou pagando outra no restaurante. O mundo dos comerciais é um mundo de igualdade econômica, social e racial (embora neles quase não apareçam negros) e de cidades limpas que abrigam uma sociedade justa, bem resolvida no quesito oportunidades para todos.

É claro que o publicitário está fazendo o trabalho dele, não me perguntem como ele venderia celular ou cartão de crédito mostrando fiéis imagens de miséria e degradação. Mas é de se pensar – e isso é o nervo da minha saturação – quanto dessa miséria e dessa degradação não tem a ajuda dos conglomerados bancários, de telefonia e cartões de crédito que te convidam ao mundo fácil e escorregadio da ilusão. Reflitamos se a fiolosofia do lucro a todo custo, que sangra nossa carne de correntistas e clientes, é por acaso condizente com as belas imagens de gente feliz vestindo a camisa verde e amarela no intervalo da Jornal Nacional. Qual o empenho dessas empresas para tornar factível aquele país perfeito de luz e som construído pelas agências de propaganda que elas contratam?

Basta lembrar que esta semana, com a notícia da tentativa de extorsão sofrida pelo vice-presidente José Alencar, verificou-se mais uma vez que as operadoras de celular nada fazem para bloquear o sinal dos aparelhos em áreas de presídios, de onde geralmente partem as ligações. É porque nesse caso elas teriam que investir em bloqueadores, o que custa dinheiro, e o que custa dinheiro diminui o lucro, e aí o mundo delas não fica tão bacana assim como nos comerciais da Copa.

No placar, Ganância 3 X 0 Responsabilidade Social.

Para todo mundo escutar.

Sempre tive problemas porque falo alto. É algo natural, como respirar ou enxergar. Quando me dou conta, está lá minha voz – que não é bela – sobressaindo no ambiente.

Muitas vezes tentei explicar, levando na brincadeira, que em família que tem muita gente você precisa falar alto mesmo, porque senão ninguém te escuta, o teu bife sempre vai ser o menor do jantar, você vai sempre ficar para trás na hora de tomar banho. Em meu caso, de descendência italiana, a voz vem acompanhada também de gestos sempre largos. Muitas vezes de raiva. Mas na maioria, garanto, de entusiasmo pela vida.

O problema de quem fala alto é ser, de uma certa forma, censurado. Quem fala baixinho, daquele jeito engolindo as palavras, dizendo tudo pra dentro e quase só pra si mesmo nunca sofre reprimenda do grupo ou interlocutor, mesmo que estes precisem quase que grudar o ouvido na boca do(a) sujeito(a) para escutar o que tem a criatura a dizer ao mundo, e mesmo que o conteúdo não valha a pena. Já quem fala alto está sempre ouvindo um “pô, fala baixo, não sou surdo, tá gritando por quê?”. Em várias dessas situações, para não entornar de vez o caldo com um desaforo ou mesmo um palavrão, resolvi ficar calado o resto do tempo, acender um cigarro em local destacado – na época em que eu fumava – e ao voltar permanecer na minha. E aí, é claro, as mesmas pessoas, balizadoras dos bons costumes, voltavam a carga, mas agora incomodadas com a outra face da moeda: “pô, tá calado por quê? Parece que não gosta de estar com a gente.”

Conheci pessoas capazes de dizer as maiores atrocidades, tipos que chegavam ao nível da humilhação, do escárnio e da ofensa, mas sempre com as frases ditas entre dentes, baixinho, quase num murmúrio cínico, finíssimas na arte de achincalhar o próximo. Mas saíam das discussões, dos entreveros, trepadas no mais alto patamar da educação e da gentileza. Eu, com minhas várias oitavas acima, chamusquei-me muito com a pecha de grosso e estúpido, mesmo quando dizia coisas que, ao pé da letra, nada carregavam de insultuosas, mas sim o intuito de ajudar pessoas de quem eu verdadeiramente gostava.

Claro, o problema é o modo de falar. Xingue a mãe do semelhante de vadia, mas com classe e falando baixo, por favor.

De uma certa forma, essa discussão (em voz baixa, pode deixar) me lembra meus tempos de colégio, lá pelos anos 70 e 80. Os bons alunos em matemática, física e química eram sempre tidos como excelentes, senão oficialmente, ao menos numa espécie de consenso entre professores e direção. Já os donos das notas altas em português, história, literatura (hum, essa então…) e geografia, não mereciam iguais considerações, pareciam ser vistos como seres limitados, capazes apenas em tarefas menores.

E o pior é que eu era péssimo em matemática, física e química.

Miniconto da piada inevitável.

A colega de trabalho, bela morena de olhos acesos, riu e contou alto o que estava lendo na internet.

– Ih, gente, olha só: ministro da Saúde recomenda sexo contra a hipertensão.

Ele, cujos sonhos secretos eram por ela habitados, foi mais rápido que uma piscada.

– Quer combater a pressão alta comigo?

Quem estava junto garante que foi milagre o grampeador não tê-lo partido a testa.

A escravidão como dívida.

Nos últimos três dias, devorei as quase quatrocentas páginas do livro 1808, do jornalista Laurentino Gomes. Foram dez anos de uma pesquisa que culminou em um livro que me pareceu detalhamento completo da vinda e da permanência da Família Real no Brasil.

À época em que se comemorava os duzentos anos da saga de D. João VI, sua família e alguns milhares de parasitas nas longínquas terras da colônia, eu lia Império a Deriva, do australiano Patrick Wicklen, que igualmente conta a fuga espetacular da nobreza lusitana para esses mares do sul. O livro de Wicklen é também muito interessante, mas fica bem atrás do de Laurentino. A impressão que tive é que o brasileiro pesquisou mais e, dono de farto material, caprichou deliciosamente nas minúcias.

Laurentino Gomes explica os treze anos em que a corte esteve por aqui, através de personagens centrais – como Napoleão, D.João e Carlota Joaquina –  e de fatos daquele período em que o Brasil deu a grande reviravolta de sua história.

Queiram ou não, um desses fatos é chaga que permanece sangrando na carne social do nosso país. Ao ler o capítulo que Laurentino Gomes dedicou à escravidão, qualquer um que possua o mínimo de respeito pelo semelhante vai se horrorizar e se perguntar como se pôde fazer aquilo tudo com os negros.

A descrição dos martírios impacta mesmo que a escravidão não seja novidade, mesmo que todos nós já tenhamos, ao longo da vida, lido sobre as atrocidades cometidas nos navios negreiros, nas senzalas, cidades e troncos.

Após ler o capítulo, é quase que obrigatória uma pausa para refletir sobre a dívida (moral, econômica, social, etc) altíssima que a sociedade brasileira tem com os negros, e que o mundo branco e desenvolvido contraiu junto à África. No meio dessa pausa, não há como não se perguntar porque no país em quase nada se mexe para quitar esse débito de barbárie. Ao contrário, até. Em vez de procurar se redimir dos mais de trezentos anos em que tratou seres humanos pior do que animais, a sociedade branca, bem formada e industrializada prefere se insurgir contra tímidas e poucas tentativas de Justiça social (Sim, claro, o sistema de quotas deveria ter a ótica social e não racial, mas por isso, então, vamos acabar com ele e deixar  problema para lá, como fazemos desde a Abolição?).

Em 1808, Laurentino Gomes diz que além dos dez milhões de negros trazidos para as Américas, outros dez milhões morreram nos navios, já que o transporte condizia com a situação de escravos. Foram, então, vinte milhões de seres humanos mortos ou submetidos a toda espécie de brutalidade.

No Holocausto, morreram seis milhões de judeus. A indústria cinematográfica ganhou mundos de dinheiro contando nas telas a história deste que também foi um genocídio. Muito por causa disso – e com toda razão – a humanidade até hoje fica de cabelos em pé ao ouvir falar das atrocidades das tropas de Hittler. De maneira contínua, os judeus permanecem lembrando ao mundo o que sofreram.

Por sua vez, os horrores da escravidão jamais mereceram tratamento nas telas, ou mesmo tanta divulgação em outras formas de expressão artítistica.

Seria diferente se negros fossem diretores de bancos importantes?

Brasilienses no espelho.

Aos 50 anos Brasília ganha um livro que a coloca frente a frente com suas origens

Por Alexandre Pilati.

 

Aproveitando as comemorações dos 50 anos de Brasília, foi lançado o quarto volume da Coleção Brasilienses. Desde 2004, a coleção tem apresentado à cidade o perfil de nomes expressivos da cultura da Capital Federal. O primeiro volume, intitulado Eu engoli Brasília, de autoria de Carlos Marcelo Carvalho, mostrou a obra e a vida do poeta Nicholas Behr. O segundo volume, lançado em 2006, com texto do jornalista Sérgio de Sá, conta a história de um dos principais nomes da música de raiz brasileira, o violeiro Roberto Corrêa. No terceiro volume, de 2008, foi a vez do fotógrafo e arquiteto carioca Luis Humberto, radicado em Brasília desde 1961. Todas essas personalidades estão entre as mais atuantes no meio cultural de Brasília e já fazem parte de nosso patrimônio histórico e artístico.

No quarto volume: o nosso “quarteto fantástico”

Os Criadores tem textos de Carlos Marcelo, Graça Ramos, Ligia Cademartori e Sérgio de Sá. Os autores escrevem sobre quatro importantes personagens da história de Brasília: Athos Bulcão, Burle Marx, Lucio Costa e Oscar Niemeyer. O livro conta ainda com um poético ensaio fotográfico de Ricardo Labastier e prefácio do cineasta Vladimir Carvalho. Diferentemente dos outros volumes da série, este número da coleção Brasilienses contempla personalidades que não estão mais vivas. A professora Lígia Cademartori se debruça sobre a obra do artista plástico Athos Bulcão e afirma que ela mostra o que há de mais exposto e mais secreto em Brasília. Segundo ela, a obra de Athos é como um espírito de Brasília, “está em toda parte e pode não ser vista” se o passante estiver desatento. Já Graça Ramos, que assina o texto sobre Burle Marx, acentua a preocupação do paisagista em equilibrar com o verde a aridez da capital planejada. Ela analisa o método de criação de Burle Marx e também a importância da presença dos seus jardins na cidade. O jornalista Sérgio de Sá, em seu texto sobre o arquiteto Oscar Niemeyer, aprofunda-se na complexidade do perfil do criador dos principais monumentos de Brasília, procurando mostrar as contradições do seu trabalho. Assim, o texto cria um efeito de distanciamento que não revela nem rejeição absoluta nem louvação irracional ao trabalho do arquiteto. Por fim, o jornalista Carlos Marcelo, no texto sobre Lucio Costa, mostra como as lembranças e vivências íntimas do urbanista acabaram se transformando em elementos fundamentais da ideologia urbana do Plano Piloto.

Declaração de amor e saudade

Este volume da Coleção Brasilienses, portanto, nem bem é lançado e já entra para a história das letras da capital. A partir dos perfis humanos de seus criadores, vai formando para o leitor uma Brasília de carne e osso, pensada por gente de verdade, mas que se transformou em uma cidade monumental, sob a marca do concreto. Não deixa de ser uma declaração de amor aos criadores de uma cidade que é tão desacreditada Brasil a fora, tomada como capital da corrupção e dos privilégios. É também um retrato da saudade de uma Brasília que, antes de ser real, era ainda um belo sonho na mente de seus criadores pioneiros.

Recuperar, verbo lento.

Verbos têm velocidade. Foi a conclusão a que chegou depois que fizeram três furos em sua barriga para que tubos com câmeras remendassem sei lá o quê nas fibras musculares. Arregalando os olhos para que não se fechassem ao peso dormente da inutilidade, foi além, fixando o canto do rodapé, onde as paredes da sala se encontram. Recuperar é verbo dos mais lentos, arrastado feito quem comeu feijoada e sobe ao sol ladeira de Ouro Preto. É carro modelo popular com cinco passageiros subindo a serra.

Amar é verbo rápido, ama-se muitas vezes a partir do primeiro olhar. Curto ou longo, dependendo se acaba depois do carnaval ou vai pela vida inteira. Matar é veloz se for por desatino, vagaroso por crueldade. Pensar também, é um gato desvairado pela noite fugindo do perigo, ou um paquiderme que transpõe metros em horas quando é sobre a vida para se tomar decisão.

Recuperar, entretanto, é moeda de apenas uma face, feudo instranferível da indolência. Quanto se leva para recuperar a fortuna perdida no jogo? A casa levada pela enchente? A confiança de quem decepcionamos? Ora, que filosofias baratas não sugerem a falta do que fazer! Ele só quer poder andar um pouco mais, uns passos a mais que sejam além do itinerário quarto-banheiro-sala-corredor, galgar uma vez que seja o mundo inantingível da esquina, o formidável universo da banca de jornal.

Mas recuperar é verbo que exige o dobro do limite que deram a sua paciência. E na quinquagésima vez em que hoje se deita na cama sempre morna de seu corpo, lembra que precisa pensar e decidir sobre a vida, mas que decidir também é, dependendo da situação, outro que a gente chama chama e não vem.

Por via das dúvidas.

Desde quando soube que a cirurgia era inevitável, a morte deixou de ser uma hipótese tão afastada assim. Em verdade, vivendo em cidade grande, ela não deveria ser para ele nenhum absurdo. Nós, cupins da madeira das grandes metrópoles, escorregamos todos os dias entre ônibus que avançam sinais e mentes povoadas pelos inventos de uma nova modalidade de sequestro ou assalto. Fora isso, há o indigesto bolo da vida diária, que se desce pela garganta não passa do estômago, de onde fica irradiando científicas possibilidades de câncer, derrame, enfarte.

Não era o maior dos otimistas, mas levava os trancos com um certo olhar erguido, achando sempre que no fim superaria. Viver até bem velho era uma “certa certeza” que o acompanhava do nada, já que essas cismas não têm maneira de serem comprovadas.

Mas justo agora, posta pela primeira vez à prova, a tal da intuição já titubeava. A morte, que raramente passeava em seus pensamentos, tornou-se lembrança diária, mesmo que discreta espectadora que senta-se na última fileira da platéia, mas que comparece a todas sessões e assiste até o final ao espetáculo. 

Ora, é um cirurgia simples, de risco bem reduzido, e discutia com a própria consciência, esta tentando animá-lo, sem entender aquele medo de que a canoa virasse logo na primeira sacudida do rio.

O problema é esse risco bem reduzido, ele devolvia em diálogo calado com a cabeça, é sempre dele que podem surgir as mais terríveis  e devastadoras possibilidades. Não vê a porta aberta apenas com uma fresta? É só um mínimo espaço, por onde mal passa o vento. Mas como ela não está trancada, se ventar mais forte a porta escancara, e nos invade a casa não apenas a ventania, mas o que tiver que entrar de males e demônios.

E de mais a mais, pode o procedimento ser tão tolo e menos dolorido que unha encravada, mas há a tal da anestesia geral, a única possível no caso. Tomar uma agulhada que lhe paralise os nervos, sempre lhe pareceu como saltar em um poço que não se vê o fundo. Por mais que digam é raso, você mergulhará e sairá do outro lado, bem ali, ó, ele temia ficar pela metade, agarrado por uma vegetação desconhecida no fundo lodoso, engolhido por um bicho estranho do qual até então só se falava em lenda. Ou então, vencer a travessia, mas surgir do outro lado inválido, sem consiência de si mesmo, entortado numa cama para todo o sempre porque descobriram tarde demais que ele era alérgico a sei lá que substância contida naquela maldita agulha.

Ô, homem sem fé! E a razão reagia, cutucava a esperança para que a ajudasse a combater a fantasia da aflição. Trazia exemplos de gente conhecida – o jogador de futebol que operou e continuou a carreira – e de pessoas próximas – o fulano do escritório contou que nem bem sentiu a picada e já estava dormindo feito bebê, acordou inteiro, sem lembrar de nada -.

Claro, claro, o normal na vida é justamente o normal. Os entreveros, os delizes, só de vez em quando, para quebrarem a rotina. O corriqueiro é o avião levantar voo e pousar. Cair é uma vez ou outra. Claro, claro, ele concordava consigo mesmo quando o enfermeiro veio buscá-lo em uma cadeira de rodas para levá-lo até o centro cirúrgico.

Dormir feito um bebê, morrer bem velho, voltou a acreditar.

Mas por via das dúvidas, deu um último olhar para tudo.

Eu sempre vou morar na 405 norte.

Dona vizinha me para e conta

De quando chegou aqui em 1980,

Dos filhos formados, que cresceram

Brincando na portaria.

As sombras verticais da tarde

Também seguirão minhas filhas até o infinito, eu comento,

E dona vizinha ainda me conta que os dela

Nunca deixaram de correr na portaria da memória,

Que até hoje brincam na portaria da lembrança.

(Dona vizinha tem nos olhos uma saudade

Que vai do primeiro  ao último dos pilotis do bloco.)

Eu gosto da dona-de-casa

Que passa com hora marcada

Para fazer a unha,

Da estudante que some no arvoredo

A caminho da universidade,

De quem veio do Maranhão

Do Piauí

E nunca mais voltou.

Há sempre lua alta que a madrugada derrama

Nos azulejos da cozinha

Quando bebo água no meio da noite.

Há sempre uns pingos da última chuva

pesando nas folhas,

virando breves cristais de sol

nas manhãs afobadas da minha pressa.

Há sempre o vento dando no alto das árvores

E o barulho das árvores conta de um tempo que não volta

Mas que também não vai embora.

(Por falar em tempo, dona vizinha,

Vamos conversando no caminho

Senão perderemos

o baile de inauguração da cidade)

Sobre os arredores de um livro.

Por esses dias leio Chegou o governador, romance de Bernardo Élis, um dos grandes nomes da literatura feita em Goiás no século passado. Encontrei um único exemplar espremido em uma estante de um desses supermercados de livros. A edição é de 1987, da lendária José Olympio Editora.

Com texto rebuscado e permeado de citações históricas acerca da da vida na capitania no período setecentista da colônia, Élis conta os dias de D. Francisco de Assis Mascarenhas ao assumir o governo de Goyáz cinco anos antes da chegada da corte portuguesa ao Brasil.

A história se passa em Vila Boa de Santana de Goiás, hoje apenas Goiás e chamada no estado e também em Brasília de Goiás Velho, alcunha rechaçada pelos moradores da cidade. Capital do estado até os anos 1930, Goiás é hoje conhecida como a terra de Cora Coralina (a cidade foi tema de post no blog em janeiro deste ano. Confira.).

O livro retrata o drama de uma capitania empobrecida e despovoada por causa da decadência da mineração. Só que em primeiro plano, estão os encontros de alcova de um jovem e fogoso governante recém chegado e Portugal.

Mas um livro é mesmo grandioso não pelo que traz como principal, mas sim pelo que apresenta de periférico ao leitor. Ao descrever  encontros amorosos do mandatário, Bernardo Élis é precioso ao detalhar, por exemplo, o brilho do fogo das tochas nos corredores das quase madrugadas furtivas do Palácio do Governo. Mais além, nas ruas, morre, nas palavras do autor, o canto dos negros em catiras e lundus. De volta aos corredores, a cumplicidade de um ou dois criados protege a luxúria de D. Francisco.

O leitor, então, adormece com essas imagens na cabeça, e isso depois de elas muito resistirem à chegada do sono. Tanto é que, de pé no meio da madrugada para um gole d’água, nos parece que é luz de fogo o brilho laranja que a luminária moderna da rua despeja na sala, e que do fundo do corredor nos assunta um negro com seu silêncio de duzentos anos.

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