Café passando, cabeça pensando

CaféVocê acorda e quando se dá conta do dia e de você mesmo, repara que, paulatinamente e enfim, está tendo a bendita complacência com as pessoas, perdendo a mania de querer que elas sejam o que você mesmo não consegue ser.

O que pode ter acontecido durante o sono pesado e bem dormido? Você se pergunta enquanto despeja café no coador de pano. Procura na memória da noite se sonhou com algo ou alguém, porque, além de tudo, acordou convicto de que se as pessoas não são o que você sonhava, isso não vai fazer a mínima diferença na tua vida.

É quando passa pela cabeça a imagem de um ou outro alguém. A água ferve e você reconhece que é tempo de dar valor aos que decididamente se importam com você. Aqueles que, por exemplo, podem reaparecer, sem avisar, do fundo do passado feliz, para abraçá-lo somente pelo que você é; não vieram com moedas de troca nos bolsos, não fizeram arquitetura da utilidade que você possa ter para eles.

Você também está aprendendo – ora, mas não era sem tempo! – que se as coisas não saíram do jeito que você esperava, em vez de pisar no lodo da decepção, deve desembrulhar o pacote do jeito que mandaram, sem reclamar da qualidade do papel do embrulho nem dos nós que deram no barbante.

É que finalmente, depois de uma vida inteira permitindo que tempestades inúteis matassem as flores do jardim, você chegou à conclusão de que é melhor mesmo aceitar as coisas como elas são, e melhor ainda fica porque não se trata de conformismo resignado com as injustiças do mundo que você sempre quis mudar.

E quando você se toca do que está pensando, o café já desceu inteiro pelo coador de pano, e com mais vontade que o costume, seu aroma tomou conta da casa inteira, como as vozes das crianças nas horas em que elas chegam correndo e felizes.

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A Bienal do B e o habitat natural da poesia

A Bienal do B do Açougue T-Bone prossegue hoje, 29, com a leitura dos poemas de mais cinquentas autores. Ontem e terça-feira 50 poetas se apresentaram. Tive o privilégio de ser um deles.

Democracia cultural é a marca principal do T-Bone, que funciona como açougue durante o dia e centro cultural à noite. Pode parecer estranho, e é. Estranhamente maravilhoso e democrático, em um país e em uma cidade que, na maioria dos casos, trancafiam a cultura em locais a preços inacessíveis. No T-Bone, a cultura é de graça, é só passar por lá.

Mas a leitura de poemas é só o principal pretexto do evento que democratiza o acesso ao mais recluso dos gêneros literários, que é a poesia.

Além do recital, há a bienalzinha, comandada pelo poeta Vicente Sá (foto) e música de qualidade. Hoje, quem se apresenta é Afonso Gadelha.

E os debates, mediados por mim, que trazem como tema a produção cultural no Distrito Federal. Por meio deles, podemos conhecer o que de relevante tem sido feito, por exemplo, na periferia da capital do país. Destaco Markão Aborígine, com quem conversei ontem sobre produção poética e que leva poesia às áreas carentes – de tudo, e não só de cultura –, mostrando que aqui pelo centro oeste não se faz apenas música para quem pegou a mulher com outro na cama.

E no meio disso tudo, a vida da cidade acontecendo normalmente ao redor, enquanto os poetas declamam no palco montado na calçada. Ontem, no fundo do recital, ouviam-se os gritos das torcidas do Flamengo e do Corinthians torcendo nos bares em volta.

Portanto, é bem possível que um verso seja momentaneamente engolido pela buzina de um carro ou por um bêbado que grita impropérios na outra calçada. Ruim? Não, o habitat natural da poesia é esse mesmo: tudo o que a toda hora nos cerca em todos os lugares e momentos.
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E por falar em Bienal do B, hoje prossigo com os lançamentos de Histórias de Pai, memórias de filho e Voando pela Noite (Até de manhã) – 2ª edição. A partir das 19h.

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Quando usávamos ficha de orelhão

Voando pela noite (até de manhã) é o meu primeiro livro. Foi lançado em 1996 e chega à sua segunda edição com a emblemática capa em preto e branco reestilizada. O automóvel é um dodge charger RT 1973, de um conhecido meu à época. O cenário é o antigo Bar da Borda, no Grajaú, no Rio, que até onde eu sei virou uma oficina mecânica. Os modelos e figurantes são todos meus conhecidos, que aceitaram participar em troca da camaradagem e de uma noite de segunda-feira fria e bem divertida, eu me lembro. Eu apareço no canto da foto, para compor o quadro, um Hithcock suburbano vagando pelos bares. A foto é de Lafayte Máximo, cujo cachê foi um abraço sincero e fraterno.

O texto original foi mantido, recebeu apenas as normas do estúpido novo acordo ortográfico. Eu e a Editora 7Letras achamos melhor não reescrever nenhum trecho, pois não haveria muito sentido reescrever. Seria como se uma banda famosa resolvesse regravar seu primeiro disco. O livro vale também pelo vigor dos meus primeiros contos, eu penso.

Aliás, a comparação com bandas de Rock é cabível, pois é o que embala as histórias passadas na virada dos anos 80 para os anos 90, em um Rio de Janeiro noturno e enfumaçado de festas e bares, e foi escrito ao som de U2, Nirvana, Legião, Barão e afins.

Nessas histórias, meus personagens masculinos procuram amor, prazer e sexo, mas sem encontrar o que verdadeiramente buscam (e sem saber que buscam): o sentido de existir para uma geração que não entendeu seu papel no mundo e em um país recém-democratizado.

Dezessete anos depois de ter sido publicado, o livro é também uma viagem no tempo devido à tecnologia da época, hoje totalmente ultrapassada. Seus personagens telefonam de orelhões com ficha e deixam recado em secretárias eletrônicas de fita K7. Me diverti muito com isso, lendo os contos outra vez após mais de dez anos sem nem pegar no livro.

Voando pela Noite (Até de manhã) foi finalista do Prêmio Jabuti na categoria contos no ano seguinte (1997). Não foi nada mau para um livro de estreia, não é mesmo?
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Histórias de pai, memórias de filho – Meu primeiro infanto-juvenil

Histórias de Pai, Memórias de filho é um livro gestado na internet, com histórias escritas de forma isolada e sem a pretensão inicial de se tornarem um livro. Em 2009 lancei meu site e meu blog ( www.andregiusti.com.br ) e logo percebi que as histórias que vivia com minhas três filhas serviriam de material para ajudar a manter a página – no caso, o blog – atualizada diariamente.

Puxadas pelas histórias com as três meninas, vieram também as lembranças ao lado de meus pais, que partiram há dez anos para a verdadeira vida. Em 2012, olhando todo esse material, descobri que havia um livro ali.

andre giusti_convite (1)Selecionei os textos mais representativos e os reescrevi, como forma de corrigir erros e deslizes próprios da linguagem apressada da rede e até mesmo aproximá-los um pouco mais de um formato literário, próprio para os livros. Ao receber os originais, o editor Jorge Viveiros de Castro, da 7Letras, notou que ali havia um livro infanto-juvenil, mesmo que eu jamais o tenha escrito com essa intenção.

Histórias de Pai, Memórias de Filho é formado por pequenos contos e crônicas. É meu quinto livro. Rápido e fácil de ler, tenho cá comigo que ele pode ser apropriado para crianças de 11 a 13 anos, embora nada impeça que adultos também o leiam, especialmente aqueles que tém a vivência maravilhosa de ser pai, mãe, ou de ainda ter por perto os pais, mesmo que esse perto seja apenas na saudade eterna.

A grande rede como libertadora literária

Meu novo site e meu novo blog entram no ar consolidando em mim uma certeza (com perdão pela redundância): a internet vai, aos poucos, libertando nós, os escritores.

Até 2009 eu era um escritor que pouco produzia. Os livros e um ou outro suplemento literário eram minha únicas vitrines. Livros não lançamos a toda hora, e no Brasil, que dizem ser de poucos leitores, às vezes penso que existem dez escritores por metro quadrado. Pode-se imaginar toda essa gente disputando um espacinho nos escassos suplementos literários.

Por ocasião do lançamento do meu site, a divulgadora da página me exortou a lançar também um blog. E disse o óbvio: você é escritor e jornalista, precisa escrever. E muito. E sempre. E todos os dias.

O óbvio mudou minha forma de trabalhar, e, consequentemente, minha relação com os leitores e minha recepção pelo público. Obriguei-me a atualizar o blog praticamente todos os dias, e a quantidade aliou-se ao poder de disseminação da internet. Passei a ser lido, comentado, divulgado, tudo o que um escritor na verdade quer e busca quando senta para escrever.

Mas a nossa libertação do velho formato impresso ou de nossas gavetas de guardados, veio mesmo com o feicibúqui. A rede social do garotão Zukerberg pode ser – e é para quem se dispõe – um canhão enlouquecido disparando contos, crônicas, poemas e afins para todos os lados. “Ah, mas tem muita porcaria”, dirão os de má vontade. Claro, mas então, qual a diferença, nesse aspecto, para o cinema, teatro, TV, música e o próprio mercado que despeja toneladas de livros na praça?

Já publiquei poemas na rede que receberam 10, 20, 50 curtidas, fora as pessoas que leram e não se manifestaram. Adoro o livro impresso e acho que jamais morrerá, mas quando, ainda mais em se tratando de poesia, gênero lunático sempre de lado, que um poema meu, se apenas encontrado na forma impressa, seria lido por 50 pessoas num mesmo dia? Nunca, nem na cabeça virada de poeta.

Adeus blog velho, feliz blog novo!

Amanhã entra no ar a nova versão do meu site e do meu blog. O carrinho amarelo, que durante quatro anos serviu de mote para minha página na internet por ocasião do lançamento de meu livro A Liberdade é Amarela e Conversível, sai de cena. Em seu lugar, entra um novo conceito de página e de blog,  centrados na minha figura como escritor. Os detalhes e o visual novo vocês saberão e verão amanhã.

Para me despedir desta antiga versão, com a qual aprendi a escrever para a grande rede, deixo com vocês dois textos publicados em janeiro deste ano, e que falam justamente de transformação, de mudanças, disso que, assim como a morte, é inevitável: o passar do tempo. Vejo vocês amanhã, com nova cara, mas com o mesmo amor por esse ofício que escolhi como forma de interpretar o mundo: escrever.

*

As estranhas réguas do tempo 1 e 2

 

É difícil, em um início de ano, fugir de qualquer reflexão sobre o tempo, sejam as banais os as que requerem maior engenharia.

Comecei minha vida profissional trabalhando com pessoas nascidas nos anos 40 e 50, ou até mesmo mais velhas, com idade para serem meus pais.

Minha geração, nascida nos anos 60, saiu da universidade, consolidou-se no mercado e viu chegar os filhos da década de 70. Mesmo que ainda não fosse tanta, já possuíamos alguma experiência para passar a eles.

Quando o novo século entrou, as pessoas que nasceram nos anos 80, portanto na minha adolescência, apareceram para ajudar nossa adaptação à reviravolta tecnológica do planeta. Ao lado deles, compreendemos, de uma hora pra outra, que fax e CD estavam obsoletos.

Dez anos se passaram e eis que, duas semanas atrás, pouco antes do natal, a estagiária pega e me conta que nasceu em 1994. Fiquei calado observando os movimentos ágeis de seus dedos na tela do smartphone, pensando como é possível que alguém que nasceu em 1994 já esteja aqui, ao meu lado, trabalhando, aprendendo o meu ofício. Aliás, como é possível que alguém tenha nascido em 1994 e já tenha idade para ser minha filha?

O tempo nos oferece estranhas réguas para medirmos o quanto ele passa.

E o quanto estamos envelhecendo.

***

Há nove anos minha carteira de trabalho não saía da gaveta. Todo esse tempo trabalhei como pessoa jurídica, figura cada vez mais fácil nas redações e assessorias de comunicação país afora.

No caso de algumas empresas, contratar como PJ realmente viabiliza a oferta de trabalho. Pela CLT seria inviável e um posto de trabalho estaria fechado. Em outros, no entanto, é esperteza patronal disfarçada de modernidade na relação trabalhista.

Julgamento de mérito à parte, minha surrada carteira viu a luz do sol depois de muito tempo e eis que sou pego de surpresa pelo rapaz do departamento de recursos humanos: “não há mais espaço para contrato de trabalho, você terá que tirar outra”, me avisa tranquilo, devolvendo-me o livreto amarelado que certamente é mais velho do que ele.

Sentei num canto e folheei suas pequenas páginas, e os anos de minha vida profissional passaram manchados de canetas e carimbos. Mas essas marcas não são apenas borrões, são mais ainda lugares, pessoas queridas ou desprezadas, alegrias, sonhos e desilusões.

Gabriel Garcia Marques diz que um homem descobre que está envelhecendo quando começa a se parecer com seu pai. Hoje descobri que isso acontece também quando a carteira de trabalho acaba e não há mais espaço para carimbos e canetadas, e ficamos com um ar abestalhado, segurando o documento, pensando que o tempo deveria ter mais consideração e não nos pegar de surpresa quando fosse avisar que está passando e que estamos mesmo envelhecendo.

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Sobre pessoas interessantes, mas não importantes (ou vice-versa)

É difícil determinar o que faz uma pessoa ser interessante, aquela que esconde e ao mesmo tempo deixa à mostra algum aspecto que nos cativa, mas que não conseguimos explicar exatamente o que é.

Ser cátedra, ter pós-doutorado na França, ser executivo de multinacional, líder reconhecido no mercado ou político influente faz o sujeito importante, mas não necessariamente interessante.

Também não é passaporte para ser interessante saber dos últimos lançamentos da Apple, da Samsung ou ter sido um dos primeiros a ir ao restaurante da moda, que forma dois quilômetros de fila na porta.

A bem da verdade, é mais provável que pessoas assim despertem sonolência em vez de interesse.

Dessa forma, eliminando esses tipos, você se surpreende verificando que com quem gostaria de conversar por mais de 15 minutos é o uruguaio que veio para o Brasil cursar a escola de circo. Ele joga malabares no sinal em que você para todos os dias, e hoje a apresentação dele estava tão boa, mas tão boa, que você, batendo palmas dentro do carro, se desculpou sinceramente por não ter nenhum trocado, ao que ele, em bom portunhol, respondeu “não tem problema, seu aplauso foi meu melhor cachê do dia”.

Há também a balconista da farmácia, que certamente foi trabalhar enlatada num ônibus, mas que te vende um antigripal com atenção e sorriso largo, e de quebra deseja de coração que você fique bem, que amanhã acorde melhor. E no dia seguinte, quando você passa, ela coincidentemente está na porta da loja e pergunta: O senhor se sente melhor?

Sem falar na loura tingida da casa lotérica, aquela em que você entrou aproveitando que não havia fila, para jogar sem qualquer esperança na mega sena. Ela apanha a nota que você pegou na carteira e diz que com o troco dá pra jogar na quina que corre à noite e, quem sabe, ganhar um milhão. “Aí, o senhor volta aqui e me dá um presente”, e pisca o olho, divertida, misturando malícia e pureza. E ela faz isso de um jeito tão alegre que você promete a si mesmo que se ficar milionário vai mesmo comprar um mimo pra ela.

E pra balconista.

E dar um belo cachê pro uruguaio.

Porque cada um, a seu modo, fez ao menos cinco minutos da sua vida serem um pouco melhores e mais divertidos.

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Nesta 2ª feira, dia 26, entram no ar meu novo site e meu novo blog, neste mesmo endereço.

PS2: De terça, 27, a sexta, 30, participo da Bienal de Literatura e Poesia do Açougue Cultural T-Bone, na 312 Norte, em Brasília, quando lançarei também meu 5º livro – História de pai, memórias de filho – e a 2ª edição de Voando pela noite (Até de manhã) – meu primeiro livro. Vejo vocês lá!

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