A reedição de um jorro de juventude

A segunda edição de um livro traz uma sensação ímpar, particular para o autor. Ainda mais quando se trata de nosso primeiro livro. Ainda mais passados 17 anos de seu lançamento.

Para a segunda edição de Voando pela Noite (Até de manhã), a Editora 7Letras me pediu que lesse seus onze contos, nada menos do que os primeiros que escrevi, quando passei a me aventurar no fantástico mundo da prosa.

Eu não abria o livro desde o início da década de 2 mil, portanto, há mais de 10 anos.

A impressão foi a de que estava revendo, depois de anos, alguém que conheci pequeno, de fraldas, e que agora me aparecia jovem, no primeiro ano da universidade. E seu rosto, perdido no tempo, me era ainda extremamente familiar.

Mas a maior delícia desse mergulho nos meus primórdios de contista foi verificar o salto tecnológico dos últimos 20 anos. Como foi escrito no início dos 90’s, os personagens do livro telefonam de orelhões de ficha, pois não há celular, e deixam recados em secretárias eletrônicas de fita K7; dirigem carros com carburador, fumam em ambientes fechados; já escutam CD, mas basicamente ainda ouvem discos de vinil.

As únicas alterações feitas dizem respeito ao novo acordo ortográfico da Língua Portuguesa. Não me pareceria sincero, e roubaria sua autenticidade, alguma mexida no texto com intuito de correção. Quando já famosa, uma banda de Rock não regrava seu primeiro disco, pois não há sentido em adequar o passado às exigências estéticas do presente.

Os contos estão escritos como foram escritos, com seus pecados literários, suas traições de estilo, suas literatices, suas infantilidades de primeiro livro. Mas, em contrapartida, há toda a energia de fio desencapado que a juventude possui, e suas histórias estão carregadas dos excessos de um cara que, aos 20 e poucos anos, descobriu definitivamente na literatura a forma como traduziria o mundo e a vida.

Flying by night, beibi! Let’s play that!

O paralelo da digestão

No começo colocamos a mesa com todo cuidado. Trazemos flores, e mesmo nos dias mais corridos da semana, não esquecemos música ambiente que amacie a conversa e a mastigação.

Aliás, no início mastigamos bastante: mais de 30 vezes em cada garfada, como recomendam os gastros e os nutricionistas. Mais até que mastigar, sentimos os sabores, e sentir os sabores é a real finalidade. Pensando bem, o que nos leva a sentarmos à mesa é a nossa fome real e verdadeira, nossa fome sincera. Isso no início.

Depois de um certo tempo, alguns sabores já passam despercebidos: não os principais – o da carne, do peixe –, mas os das especiarias, aqueles que faziam a diferença sem nos darmos conta, sem sabermos que estavam na receita. As flores ainda são postas, mas não são mais tão notadas, e já não saberíamos dizer se sentiríamos sua falta se não fossem trazidas. A música, se toca, não amacia a conversa: temos endurecido os assuntos e já não mastigamos tanto quanto o recomendado. Mas continuamos comendo.

Os anos já levaram das paredes alguns calendários. Flores, só as plásticas, e estão sempre lá sem serem notadas, pois as usando, não há a necessidade de um ramo novo a cada dia.

A música foi substituída pelo silêncio das bocas, que quase não mastigam mais, engolem quase de pronto, já que é preciso ir rápido com tudo isso, recolher logo os pratos, pois assim se evita os assuntos endurecidos. Sabores? Aquele que nos restou é apenas um que é de uniforme pasta sem sal, temperos ou especiarias. Engolimos, apenas para que não nos doa o estômago mais tarde.

No final, sabores, flores e músicas parecem apenas lembranças absurdas do tempo em que mastigávamos. Agora, engolimos direto, melhor até seria se houvesse um buraco na garganta em que colocássemos a comida, poupando-nos de passá-la pela boca. E no silêncio que já é de muito tempo, abolimos até mesmo os assuntos endurecidos.

Mas, então, de estômago pesado e digestão difícil, em algum momento da noite precisaremos decidir: queremos abrir mão de comer para sempre, ou vamos brigar pelo prazer de sentir fome outra vez?

Estatística contra o pré-julgamento

Trabalho no Setor Comercial Sul, em Brasília, área da capital do país onde se aglomeram centenas de usuários de crack.

São chamados de cracudos por quem trabalha na região. A palavra carrega muitas vezes deboche, outras repugnância, mas na maioria dos casos é empregada automaticamente, por costume, não possui viés negativo. Muito menos positivo.

Independentemente disso, designa pessoas que perderam, em boa parte, não apenas a noção do que é um lar, do que é família, escola, trabalho. Perderam a própria referência de quem são, quiçá nem lembrem mais o próprio nome.

É chegarem perto, e todos,  na ojeriza que cada um de nós nutre por quem a sociedade virou as costas, protegem carteiras, relógios e smartphones. É raro um olhar de misericórdia, sentimento cada dia mais escondido nas gavetas do individualismo.

O normal é o julgamento, sempre no mesmo padrão, desprovido de conhecimento do mundo particular de cada um desses miseráveis: tá nessa vida por que quer!

Pois bem.  Uma pesquisa da Defensoria pública do Rio revelou que somente 13% dos moradores de rua são analfabetos, 65% não bebem e 62% não usam drogas (veja detalhes na revista Pragmatismo Político http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/05/maioria-da-populacao-de-rua-nao-bebe-nem-se-droga-aponta-estudo.html ).

Os números servem não apenas para que o Estado, e aí não reúno só governos, mas médicos, sociólogos, etc, pare para pensar porque realmente essas pessoas preferem o desalento da rua do à segurança de um lar. Servem, num primeiro momento, para que nós abandonemos essa nossa insistência em pré-julgar tudo e todos que não estejam de acordo com o que entendemos por correto.

Não é por aí

Recebo a notícia de que um casal gay entrou em um templo evangélico este fim de semana e começou a se beijar.

Provocaram indignação no fieis, naturalmente, mas é possível que a intenção tenha sido outra: serem escorraçados e de lá saírem bradando que foram vítimas de preconceito.

Não lograram êxito, pois, para a sorte da civilidade, a informação é que a situação foi contornada com gentileza por um dos administradores da igreja (Assembleia de Deus).

É claro que se trata de um caso isolado, mas penso que o movimento gay ganharia muito vindo a público condenar qualquer tipo de provocação.

Não é espicaçando os contrários que se consegue aprovação para ideias e comportamentos. Pior, há o risco de se angariar a antipatia de quem se mantinha neutro na polêmica, e que levado por um bom discurso poderia oferecer sua adesão.

Sou heterossexual totalmente favorável à união civil dos homossexuais e à adoção de crianças por casais gays, caso tenham condições materiais, emocionais e morais para isso. Mas um gesto assim só adensa o vozerio de quem é visceralmente contra, forma como se manifesta a maioria dos evangélicos que conheço.

Alguém imagina o efeito de um pastor invadindo uma boate gay para pregar a Bíblia?

Provocação pode instigar o ódio, que é o preconceito amplificado. E não se consegue uma sociedade justa, na qual todos, inclusive os gays, tenham seus direitos reconhecidos, quando ferve o caldeirão do ódio.

A tediosa juventude de hoje

O caderno Ilustrada, da Folha de São Paulo de hoje, traz uma pequena reportagem sobre o filme Somos tão Jovens, do cineasta Antônio Carlos da Fontoura.

O jornal mostra, sem tom de crítica, que algumas passagens da vida de Renato Russo foram mudadas ou condensadas para que “coubessem” melhor na telona. Isso é normal no cinema.

Uma delas é, a meu ver, a melhor cena do filme: quando a ainda incipiente Legião Urbana toca no interior de Minas a música Que país é este? de frente para um palanque coalhado de militares, que à época ainda davam as cartas.

Segundo a matéria, a música tocada não foi essa, e sim Música Urbana, que pode não ter uma pegada tão firme, mas tem letra de mesma contundência.

A matéria, assinada pelo jornalista Iuri de Castro Tôrres, revela que tanto a Legião quanto a Plebe Rude – que também tocou no mesmo dia – foram parar na delegacia depois do show. O fato foi omitido do filme, a meu ver um pecado sem desculpa.

A cena do show e a cara contrariada dos milicos (aqui uso a palavra pejorativamente, pois para mim denota os que não honraram a farda) resumem o que foi uma geração crescida à sombra de um contato mais ou menos próximo com a repressão e o terror, dependendo de cada caso.

Alienados existiam, naquela e em todas as gerações. No próprio círculo de amigos de Renato, ele parece ser o único inquietado com as mazelas de um país injusto, em que não se podia falar das injustiças.

Mas, olhando pros dias de hoje, me parece que 30, 35 anos atrás havia mais Renatos Russos, não pelo talento, mas pela postura indignada, e que no caso de alguma capacidade de expressão, usavam isso para, ao menos, sacudir a poeira da mesmice, ou em definição mais lírica, cumprir o papel de ser jovem no mundo.

Renato tinha 20 anos na época, mesma idade em que atualmente as pessoas, ao menos em Brasília, palco da história inicial do astro, estão trancadas em casa ou em salas de aula para passarem em concursos públicos e garantirem a comodidade de uma vida estável, pensando não apenas na própria aposentadoria, mas na dos filhos que nem vieram ainda.

Tédio com T bem grande pra você!, juventude do terceiro milênio!

Os extintos rompantes de torcedor

Por diversas vezes, quando o domingo corria alto, decidi ir ao Maracanã de supetão, sem programar nada. Ou porque algum colega chamava, ou porque batia aquela comichão repentina de torcedor com sexto sentido que pressente que aquele é o dia do time.

A diversas vitórias do Flamengo assisti após um rompante de ir ao velho Maraca (não esse aí, sem personalidade, com o nome nojentinho de arena) quando já tomava o cafezinho depois do almoço. Presenciei derrotas também, mas é da vida. De torcedor.

Em boa parte isso era permitido pelo preço dos ingressos. O bilhete de uma partida comum, de meio do campeonato, custava hoje o equivalente a R$ 10, R$ 20. Muitas vezes havia tumulto na compra, mas nada comparável à espera de quatro horas na fila que acontece neste momento em um shopping de Brasília para os torcedores que querem ir a Flamengo e Santos (25/5), jogo que deve mensurar se o novo Estádio Mané Garrincha segura mesmo o tranco das Copas da Confederação e do Mundo.

Mas o que me espanta mais – e me indigna – é o preço: R$ 80 a meia entrada do ingresso mais barato. O mais salgado chega a R$ 400. Parece até que de um lado estarão o Santos de Pelé e do outro, o Flamengo de Zico.

A exemplo do desfile das escolas de samba, cuja origem de espetáculo do povo e para o povo se perdeu há dezenas de carnavais, o futebol se distancia e se distanciará cada vez mais da população média brasileira (não da de Brasília, nossa Ilha da fantasia).

Acho que quase ninguém com aquele antigo perfil de torcedor tem 80 pratas para sacar de chofre, no fim de um almoço de domingo. Além disso, será preciso decidir com quase duas semanas de antecedência se irá ou não ao estádio. A delícia inesperada de ver ao vivo o time ganhar (ou a frustração de vê-lo perder) não cabe mais no futebol.

O Jornal Nacional e a Abolição

Interessante a reportagem exibida pelo Jornal Nacional de Ontem (13), dia que marcou os 125 anos da Abolição da Escravatura.

Resumiu-se em cerca de dois minutos o cenário em que se deu a libertação dos negros no Brasil. A matéria procurou tirar as luzes de cima da Família Real e explicar rapidamente que outras forças foram as responsáveis por abrir as senzalas.

Citou algumas províNcias do Império, como o Ceará, onde os negros já estavam livres antes do 13 de maio, mas não se preocupou em lembrar os motivos econômicos que moveram tal antecipação. Muito menos foi citado o incentivo da Inglaterra com sua pressão para criar mercado consumidor.

Mas é sempre válido quando a TV, mesmo que na sua peculiar superficialidade – e aí trata-se de característica do veículo, e não de uma emissora – leva à audiência um pouco da história do Brasil. Entende-se o presente quando o passado é conhecido, e essa frase não é minha.

Só que antes, abrindo o Jornal Nacional, foi exibida a reportagem sobre um menino de 12 anos – negro – que assaltou uma residência e foi pego pela Polícia. Fez-se um paralelo a outro caso de menor envolvido com o crime, só que nos EUA, deixando claro que lá o garoto vai pra cadeia e aqui não. Houve preocupação em mostrar as condições sociais em que vivem as duas crianças, em países diferentes? Não, nenhuma. Pouco jornalismo, muita propaganda da redução da maioridade penal.

O objeto da primeira reportagem – menino negro, de 12 anos, assaltante – é fruto do que não foi mostrado na reportagem sobre a Abolição: a forma como os libertos foram entregues à própria sorte, com suas cartas de alforria nas mãos, na falta de planejamento que caracteriza o Brasil em mais de cinco séculos.

Mas reconheço de pronto que é querer demais que uma matéria de telejornal tenha contextualização e enfoque sociológico, ainda mais quando vai contra à filosofia da emissora.

Esquerda e direita ainda existem sim

Por causa das mudanças na ordem mundial nos últimos 20 e poucos anos, tem se buscado estabelecer como espécie de senso comum a ideia de que não existe mais esquerda nem direita nem no mundo nem no Brasil.

Nunca fui filiado a partidos, sequer algum dia fiz campanha política em nível pessoal. Meu máximo é sempre declarar meu voto abertamente, até para que isso sirva de pretexto para discussão.

Mas me considero um sujeito de esquerda.

Isso porque permaneço defendendo ideias que, historicamente, foram defendidas pela esquerda, me contrapondo, consequentemente, a posturas adotadas pelo lado contrário. E esse lado oposto continua, por sua vez, dono de posições bem claras, conceituadas e consolidadas ao longo da história como de uma determinada corrente de pensamento.

Como, então, não existe mais nem um lado nem outro?

Por que, então, continuo pensando totalmente diferente de quem, por exemplo, aposta na onipresença da economia de mercado em todo e qualquer setor da vida do cidadão?

A tentativa de apagar a linha divisória entre correntes ideológicas sempre aparece maquiada de desilusão política, mas por debaixo dessas tintas talvez carregue o objetivo maior de despolitizar a sociedade, começando pelas que estão realmente desiludidas politicamente, como a brasileira.

E sociedade despolitizada só interessa a quem detém o poder, seja qual for a instância (inclusive a da mídia).

E esse interesse independe de qual lado esteja mandando.

O debate emocional da maioridade penal

Um dos membros de uma família de tradição sindical e de fundadores do PT é assaltado por dois adolescentes. Levam o carro, a bolsa, todos os documentos e cartões. Ameaçam com uma arma. Felizmente a integridade física é preservada.

No dia seguinte, me pedem que faça campanha pela redução da maioridade penal. Eu já esperava. O debate sobre o assunto se inicia sempre no calor do trauma. E entendo que seja assim. Assim como aceito até o principal argumento técnico dos que defendem a redução: sabendo que podem ser condenados, os que têm menos de dezoito anos vão pensar duas vezes antes de cometer um crime.

Mas aí acho que já começa o problema: Polícia investigando com competência, Justiça condenando rapidamente. Bem, se o bandido for preto e pobre, é possível que aconteça. Se for branco e rico, é difícil que a redução atinja resultados concretos.

Se a perspectiva da condenação intimidasse, não haveria criminalidade nem aos dezesseis nem aos dezoito nem aos trinta nem aos cinquenta. O ser humano vai para o lado errado da vida por razões que não cabem aqui. E quando falamos em condenação, temos em mente locais que realmente recuperam infratores? Isso existe no seu país? No meu, não.

Reduzir a maioridade penal só valerá a pena em um cenário de escola forte, professor respeitado e bem pago, educação que ponha jovens competitivos no mercado de trabalho, além de programas sociais que façam frente às ilusões que a vida do crime oferece aos delinquentes.

A tudo isso acrescento os pais assumindo de verdade seu papel na sociedade e cuidando pessoalmente da educação de seus filhos.

Tomadas todas essas providências, acho pouco provável que haja a necessidade de redução da maioridade penal.

A moça da mesa ao lado

Uma das moças na mesa ao lado no restaurante espera a irmã, que demora um pouco. É domingo, faz sol e elas são bem jovens. Portanto, a espera não incomoda.
A irmã chega fazendo cara de lamento e pergunta “Sabe aquele casaquinho que você me emprestou?”. Embora não perca a tranquilidade, a outra já sabe que boa coisa não aconteceu. “Pois é, fui lavar e ele ficou assim e assim”, e detalha o estrago, se desmanchando em pedidos de desculpas.
A dona do casaco não se abala. Dá de ombros, “tudo bem”, e ela diz que tem vários, não vai fazer falta.
É claro que esse comportamento é traço de sua personalidade, mas fico pensando que nele deve haver muito da educação dada pelos pais.
É possível que tenham ensinado que não vale a pena privar-se da paz de um domingo ensolarado por causa de coisas sem muita importância, mesmo que às vezes sejam até maiores e mais valiosas que um casaco.
É provável também que tenham cultivado nas filhas o sentimento de não competição, a não quererem, a qualquer custo e de todo o modo, ser sempre melhor do que a outra, do que os outros em todos os lugares e ocasiões.
Acho que se educarmos nossos filhos assim, no lugar do conflito teremos a harmonia; no da vingança, o perdão, e a amizade substituirá, certamente, a rivalidade.
Quando nos dermos conta, no futuro, teremos contribuído para um mundo melhor.
Aliás, na casa daquelas duas irmãs do restaurante, o mundo certamente deve ser um pouco melhor.
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