Mais uma vez sobre livros.

Nas últimas duas semanas emendei um no outro livros de história do Brasil, mais especificamente sobre o período colonial, um tanto esquecido pela literatura do assunto, ao menos se comparado com outros períodos tais como Império e Revolução de 1964.

Comecei com Chegou o governador, um dos únicos dois romances do goiano Bernardo Élis. Aliando pesquisa histórica à ficção de romancista, Élis presenteou o país com um belo romance passado em Vila Boa de Goiás, antiga capital do estado, hoje conhecida apenas como Goiás e, principalmente, por ser terra de Cora Coralina.

Ele esmiuça o declínio da capitania no século 18 após ter se esgotado não o garimpo do ouro em si, mas as possibilidades de prosseguir com a mineração devido a ausência de técnicas na época capazes de fazer aflorar a riqueza ainda escondida no solo goiano. A realidade econômica e social é pano de fundo para o amor de Francisco de Assis Mascarenhas, governador da província, e Ângela Ludovico, bela, ousada e audaz jovem da sociedade. Para quem como eu, conhece Goiás, o livro de Bernardo Élis é roteiro turístico para a imaginação.

Em seguida devorei 1808, de Laurentino Gomes. Poucas vezes na vida li tão rapido um livro tão volumoso. Foram quase quatrocentas páginas em menos de quatro dias. Mérito da história do país e do autor, o jornalista paranaense Laurentino Gomes, que passou longe da linguagem acadêmica dos historiadores. Por isso fez deliciosa a saga de D. João, Carlota Joaquina e Maria I, a louca, nesses tórridos trópicos de luxúria, beleza e, já naquela época, muita bandalha com o dinheiro público.

Da mesma forma que Élis, Laurentino Gomes me conduziu feito guia a imaginação transportada ao passado. Há trechos em que, principalmente nós cariocas,  devemos ler e reler para reconstruir solidamente na cabeça como era a nossa tão amada cidade naqueles tempos de muitos brancos preguiçosos e outros tantos negros vilependiados em sua dignidade.

Por fim, retorno ao meio do país. Comecei há pouco A história da vida e do homem no Planalto Central, de Paulo Bertran, certamemnte o maior levantamento sobre o que existia no coração do Brasil antes de Luis Cruls demarcar a área do atual Distrito Federal. Ainda estou bem no início, parte em que Bertran discorre sobre a pré-história na região. Prometo trazer minha impressão geral depois que terminar. Aliás, sobre esse livro, uma curiosidade: comprei-o em uma rede de sebos. Era o único exemplar em todo o país, ao menos nessa rede. Assim sendo, custou o preço de um livro novo. Penso que merece uma nova edição.

Entretanto, o que quero dizer mesmo é sobre a capacidade que os livro têm não apenas de nos ensinar, informar, formar opiniões, soldar conhecimentos, mas também, no caso dos livros de história, de possibilitar a viagem da mente no tempo, como se páginas fossem túneis que atravessamos, indo e voltando dos séculos.

O segredo do quarto.

A menina acordou queixado-se de dores muito fortes na perna, de que não conseguia nem pisar direito o chão.

Seu talento para o drama, não obstante a pouca idade, já era notório desde o berço. Um pequeno corte no dedo tornava-se um talho profundo; quem visse seu choro após uma queda comum poderia jurar que voara da escada.

Mas como as horas foram passando e ela realmente pisasse em falso, além de não cessar a lamúria, resolveram levá-la ao pronto-socorro.

O médico, com cara passada de fim de plantão, explicou que aquelas dores eram até comuns em crianças, tudo devido ao esfoço das estripulias. Algum movimento de forma repetitiva mexia com alguma estrutura da bacia, e a dor reflexia ganhava a perna.

Ele assinou o pedido de exame e entregou à mãe.

Vá lá, tire um raio X da bacia e volte aqui com o resultado.

O espanto fez com que a menina abandonasse seu silêncio intrigado.

Mamãe, a gente não trouxe bacia!

A sonora gargalhada do médico sacudiu a exaustão que pesava sobre o consultório.

Dias depois a menina ouvia a conversa da mãe e da avó. Na verdade, não é que ouvisse, pensava lá em seu mundinho e de vez em quando ficava mais atenta, pois uma coisa ou outra lhe despertava o interesse, ou ainda mais a imaginação.

Foi o caso do comentário da mãe: o segredo da cozinha é lavar logo o que se vai sujando.

E aquilo ficou indo e voltando de sua cabecinha, feito vento que dá no alto da árvore, para, e logo logo sopra de novo.

Até que horas depois, a vó até já havia ido embora, ela fitou a mãe com seus olhos que ficavam enormes por trás dos óculos, olhos que emprestavam o azul ao próprio céu de outono.

Mãe, qual é o segredo do quarto?

Imagens do nascimento da capital.

Por Alexandre Pilati*.

 

Quem primeiro fotografou nossa cidade com lentes de artista foi o fotógrafo francês Marcel Gautherot, que, convidado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, passou dois anos, de 1958 a 1960, fotografando os trabalhos de construção da cidade. Das suas imagens surge uma Brasília ainda em gestação, em que a luz e as sombras compõem a poesia de um sonho que virou realidade.

Nesta semana, mais precisamente no dia 29 de abril, o Instituto Moreira Sales (IMS) presta uma homenagem ao fotógrafo francês e aos 50 anos de Brasília, lançando o belíssimo livro Marcel Gautherot – Brasília, que reúne mais de 150 fantásticas imagens de diversos ângulos dos canteiros de obra dos monumentos que viriam a se tornar símbolos emblemáticos da nova capital do país, tais como o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto, a Catedral e a esplanada dos Ministérios.

Quem foi o fotógrafo Marcel Gautherot?

Nascido na França, em 1910, Marcel Gautherot foi um dos grandes fotógrafos de sua geração. Ele estudou arquitetura e design de interiores na “École des Arts Décoratifs”, em Paris e já fotografava quando resolveu vir para o Brasil, em 1939, a fim de registrar a cultura popular do delta do Rio Amazonas. Depois da convivência com os brasileiros e graças ao fascínio que a natureza tropical lhe despertou, o fotógrafo adotou o Brasil como sua segunda pátria. Tanto assim que, desde a década de 1940, Gautherot passou a viver no país, vindo a falecer, em 1996, no Rio de Janeiro. Nesse período que viveu nas terras brasileiras, o fotógrafo produziu mais de 25 mil imagens da cultura e das paisagens do país que adotou. Essas imagens hoje integram o acervo do Instituto Moreira Sales, que é o responsável por essa publicação cuja temática é a construção de Brasília.

 

O livro: instantâneos de uma cidade em elaboração

O livro Gautherot – Brasília reúne imagens de uma exposição que entra em cartaz na sede do Instituto Moreira Salles no Rio de Janeiro, no mesmo dia do lançamento do livro. Além das imagens de Brasília, a publicação conta com um ensaio inédito, encomendado especialmente para esta edição, do arquiteto e crítico inglês Kenneth Frampton, professor da Columbia University, e um ensaio introdutório de Sergio Burgi, coordenador de fotografia do Instituto Moreira Salles. O olhar de Gautherot, preciso, quase clínico, captura uma Brasília ao mesmo tempo promissora e ameaçadora, enorme e frágil, mítica e problemática. As imagens de Gautherot, dessa forma, captam uma poética urbana em elaboração e, portanto, ainda não contaminada pelo peso do oficialismo e dos problemas que acabaram por corroer a imagem da cidade.

O livro é organizado por Samuel Titan Jr. e Sergio Burgi e entra para a história da fotografia no Brasil por que é a primeira vez que grande parte do trabalho de Gautherot sobre a cidade de Brasília é publicado. Numa tarefa extremamente difícil, dada a qualidade das fotos do francês, as imagens da publicação foram selecionadas dentre mais de três mil fotografias que compõem o acervo do fotógrafo apenas sobre a capital brasileira. É um livro que deveria constar na biblioteca de todo brasiliense que ama a sua cidade, pela beleza insuperável das fotografias e pelo cuidado com que a edição foi tratada. Quem quiser conferir um pouco do trabalho de Marcel Gautherot sobre Brasília e outras regiões e temáticas brasileiras pode acessar o site do Instituto Moreira Sales, no endereço: http://ims.uol.com.br/.

*Entra no ar hoje, dia 1 de maio, o blog do poeta e doutor em literautra e professor da UnB, Alexandre Pilati. Vale muito a pena conferir: www.alexandrepilati.com/blog/ . O sítio é de muito bom gosto, bem de acordo com a poesia de Pilati. E para lembrar: ele conversa comigo sobre litaratura na BandNews FM 90,5 Brasília todas às segundas-feiras às 16h51, com reprise às terças, às 11h30.

Rubem Braga*, meu mestre.

Há muito tempo eu não me encontrava com você. E hoje, por um  desses desvios que a vida nos dá de presente como remanso da rotina, abri um de seus livros numa de suas histórias* mais preciosas.

Era um lugar em que o sol da manhã brincava de recortes com jaqueiras, jequitibás e mangueiras, e de uma a outra, em voos largos, outros breves, o bem-te-vi, o sanhaço e o joão-de-barro cumpriam a tarefa da polinização, ameaçada pelo bicho homem e seu desprezo pelas árvores.

Cantavam os pássaros. Creio eu que me contavam sobre você: ah, esses nos conhecia, pelo canto e pelo voo de acordo com o vento. Foi o que supus, não entendo a linguagem deles, essa ciência era seu domínio, um de seus ingredientes para transformar o corriqueiro em magnífico.

Pois sentado com o livro entre as mãos emocionadas, eu parecia aquele sobrinho que ouve o velho tio depois de ter ido correr mundo e voltado sabendo que o mundo é bem diferente daquele que estava nos meus planos. Ao redor havia o vento nas folhagens e a insistência dos pássaros, agora em outro assunto. Lembravam-me que a simplicidade é coroa da beleza, e que esta de nada mais precisa para ser o que é. Advinha nos livros de quem aprendi isso!

Eu tinha doze anos quando fui apresentado a eles. Só mesmo um mestre de muito talento para caputar a cabeça de um garoto para quem a importância da vida não ia além do time de botão, do campeonato de futebol e das primeiras meninas. Hoje, lendo na maturidade suas crônicas – ou será que poemas com outra roupa? -, noto que você é bem melhor do que quando eu tinha certeza de que você era ótimo. É como se eu voltasse pelo mesmo caminho, mas agora reparando na pitangueira que não percebi na ida, ou no casebre distante que me fugiu porque estava olhando para o lado oposto. Acho que a vida se apiedará de mim outras vezes, e me ofertará alguns outros remansos na rotina antes que eu vire sopro no infinito. Aí faço de novo o caminho e conto o que descobri a mais.

* Rubem Braga é considerado o maior cronista brasileiro depois de Machado de Assis. Ele morreu em dezembro de 1990, aos 77 anos.

* A casa dos homens (do livro O verão e as mulheres).

A opressão dos comerciais em tempo de Copa do Mundo.

Tempos atrás, no tuíter, alguém escreveu que ficava enjoado dos grandes eventos antes mesmo de eles começarem. Referia-se a Olimpíadas, Copa do Mundo e outros de porte semelhante que arrastam para nossas casas a massificação impiedosa da publicidade dos produtos que bancam nas TVs a transmissão dessas competições. E o motivo do fastio era esse mesmo, a invasão da vida e do mundo irreais da propaganda, algo elevado a quinta potência quando se está às vésperas de um campoenato mundial de seleções.

Quando eu era mais jovem, as semanas que antecediam uma Copa do Mundo, por exemplo, eram de excitação plena por tudo que envolvesse a disputa, inclusive os anúncios no rádio e na TV. Hoje, também provavelmente por causa da cacetice da idade adulta, mas ainda pela possibilidade da propaganda ser mais agressiva e incisiva, antes que comecem, esses mega eventos já enchem as bacias da minha paciência.

O que me satura não é somente o excesso de anúncios com o viés da Copa – de bala juquinha a viagens à lua, se existissem – mas o conteúdo desses comerciais. Além dos cada dia mais banais e sem graça anúncios em que os argentinos são ridicularizados, há os que me fazem pensar se o país em que vivo é o mesmo da OI, do Itaú e da Visa.

Reparem como são felizes e estão sempre satisfeitas as caras que aparecem falando ao celular, abrindo uma conta ou pagando outra no restaurante. O mundo dos comerciais é um mundo de igualdade econômica, social e racial (embora neles quase não apareçam negros) e de cidades limpas que abrigam uma sociedade justa, bem resolvida no quesito oportunidades para todos.

É claro que o publicitário está fazendo o trabalho dele, não me perguntem como ele venderia celular ou cartão de crédito mostrando fiéis imagens de miséria e degradação. Mas é de se pensar – e isso é o nervo da minha saturação – quanto dessa miséria e dessa degradação não tem a ajuda dos conglomerados bancários, de telefonia e cartões de crédito que te convidam ao mundo fácil e escorregadio da ilusão. Reflitamos se a fiolosofia do lucro a todo custo, que sangra nossa carne de correntistas e clientes, é por acaso condizente com as belas imagens de gente feliz vestindo a camisa verde e amarela no intervalo da Jornal Nacional. Qual o empenho dessas empresas para tornar factível aquele país perfeito de luz e som construído pelas agências de propaganda que elas contratam?

Basta lembrar que esta semana, com a notícia da tentativa de extorsão sofrida pelo vice-presidente José Alencar, verificou-se mais uma vez que as operadoras de celular nada fazem para bloquear o sinal dos aparelhos em áreas de presídios, de onde geralmente partem as ligações. É porque nesse caso elas teriam que investir em bloqueadores, o que custa dinheiro, e o que custa dinheiro diminui o lucro, e aí o mundo delas não fica tão bacana assim como nos comerciais da Copa.

No placar, Ganância 3 X 0 Responsabilidade Social.

Para todo mundo escutar.

Sempre tive problemas porque falo alto. É algo natural, como respirar ou enxergar. Quando me dou conta, está lá minha voz – que não é bela – sobressaindo no ambiente.

Muitas vezes tentei explicar, levando na brincadeira, que em família que tem muita gente você precisa falar alto mesmo, porque senão ninguém te escuta, o teu bife sempre vai ser o menor do jantar, você vai sempre ficar para trás na hora de tomar banho. Em meu caso, de descendência italiana, a voz vem acompanhada também de gestos sempre largos. Muitas vezes de raiva. Mas na maioria, garanto, de entusiasmo pela vida.

O problema de quem fala alto é ser, de uma certa forma, censurado. Quem fala baixinho, daquele jeito engolindo as palavras, dizendo tudo pra dentro e quase só pra si mesmo nunca sofre reprimenda do grupo ou interlocutor, mesmo que estes precisem quase que grudar o ouvido na boca do(a) sujeito(a) para escutar o que tem a criatura a dizer ao mundo, e mesmo que o conteúdo não valha a pena. Já quem fala alto está sempre ouvindo um “pô, fala baixo, não sou surdo, tá gritando por quê?”. Em várias dessas situações, para não entornar de vez o caldo com um desaforo ou mesmo um palavrão, resolvi ficar calado o resto do tempo, acender um cigarro em local destacado – na época em que eu fumava – e ao voltar permanecer na minha. E aí, é claro, as mesmas pessoas, balizadoras dos bons costumes, voltavam a carga, mas agora incomodadas com a outra face da moeda: “pô, tá calado por quê? Parece que não gosta de estar com a gente.”

Conheci pessoas capazes de dizer as maiores atrocidades, tipos que chegavam ao nível da humilhação, do escárnio e da ofensa, mas sempre com as frases ditas entre dentes, baixinho, quase num murmúrio cínico, finíssimas na arte de achincalhar o próximo. Mas saíam das discussões, dos entreveros, trepadas no mais alto patamar da educação e da gentileza. Eu, com minhas várias oitavas acima, chamusquei-me muito com a pecha de grosso e estúpido, mesmo quando dizia coisas que, ao pé da letra, nada carregavam de insultuosas, mas sim o intuito de ajudar pessoas de quem eu verdadeiramente gostava.

Claro, o problema é o modo de falar. Xingue a mãe do semelhante de vadia, mas com classe e falando baixo, por favor.

De uma certa forma, essa discussão (em voz baixa, pode deixar) me lembra meus tempos de colégio, lá pelos anos 70 e 80. Os bons alunos em matemática, física e química eram sempre tidos como excelentes, senão oficialmente, ao menos numa espécie de consenso entre professores e direção. Já os donos das notas altas em português, história, literatura (hum, essa então…) e geografia, não mereciam iguais considerações, pareciam ser vistos como seres limitados, capazes apenas em tarefas menores.

E o pior é que eu era péssimo em matemática, física e química.

Miniconto da piada inevitável.

A colega de trabalho, bela morena de olhos acesos, riu e contou alto o que estava lendo na internet.

– Ih, gente, olha só: ministro da Saúde recomenda sexo contra a hipertensão.

Ele, cujos sonhos secretos eram por ela habitados, foi mais rápido que uma piscada.

– Quer combater a pressão alta comigo?

Quem estava junto garante que foi milagre o grampeador não tê-lo partido a testa.

A escravidão como dívida.

Nos últimos três dias, devorei as quase quatrocentas páginas do livro 1808, do jornalista Laurentino Gomes. Foram dez anos de uma pesquisa que culminou em um livro que me pareceu detalhamento completo da vinda e da permanência da Família Real no Brasil.

À época em que se comemorava os duzentos anos da saga de D. João VI, sua família e alguns milhares de parasitas nas longínquas terras da colônia, eu lia Império a Deriva, do australiano Patrick Wicklen, que igualmente conta a fuga espetacular da nobreza lusitana para esses mares do sul. O livro de Wicklen é também muito interessante, mas fica bem atrás do de Laurentino. A impressão que tive é que o brasileiro pesquisou mais e, dono de farto material, caprichou deliciosamente nas minúcias.

Laurentino Gomes explica os treze anos em que a corte esteve por aqui, através de personagens centrais – como Napoleão, D.João e Carlota Joaquina –  e de fatos daquele período em que o Brasil deu a grande reviravolta de sua história.

Queiram ou não, um desses fatos é chaga que permanece sangrando na carne social do nosso país. Ao ler o capítulo que Laurentino Gomes dedicou à escravidão, qualquer um que possua o mínimo de respeito pelo semelhante vai se horrorizar e se perguntar como se pôde fazer aquilo tudo com os negros.

A descrição dos martírios impacta mesmo que a escravidão não seja novidade, mesmo que todos nós já tenhamos, ao longo da vida, lido sobre as atrocidades cometidas nos navios negreiros, nas senzalas, cidades e troncos.

Após ler o capítulo, é quase que obrigatória uma pausa para refletir sobre a dívida (moral, econômica, social, etc) altíssima que a sociedade brasileira tem com os negros, e que o mundo branco e desenvolvido contraiu junto à África. No meio dessa pausa, não há como não se perguntar porque no país em quase nada se mexe para quitar esse débito de barbárie. Ao contrário, até. Em vez de procurar se redimir dos mais de trezentos anos em que tratou seres humanos pior do que animais, a sociedade branca, bem formada e industrializada prefere se insurgir contra tímidas e poucas tentativas de Justiça social (Sim, claro, o sistema de quotas deveria ter a ótica social e não racial, mas por isso, então, vamos acabar com ele e deixar  problema para lá, como fazemos desde a Abolição?).

Em 1808, Laurentino Gomes diz que além dos dez milhões de negros trazidos para as Américas, outros dez milhões morreram nos navios, já que o transporte condizia com a situação de escravos. Foram, então, vinte milhões de seres humanos mortos ou submetidos a toda espécie de brutalidade.

No Holocausto, morreram seis milhões de judeus. A indústria cinematográfica ganhou mundos de dinheiro contando nas telas a história deste que também foi um genocídio. Muito por causa disso – e com toda razão – a humanidade até hoje fica de cabelos em pé ao ouvir falar das atrocidades das tropas de Hittler. De maneira contínua, os judeus permanecem lembrando ao mundo o que sofreram.

Por sua vez, os horrores da escravidão jamais mereceram tratamento nas telas, ou mesmo tanta divulgação em outras formas de expressão artítistica.

Seria diferente se negros fossem diretores de bancos importantes?

Brasilienses no espelho.

Aos 50 anos Brasília ganha um livro que a coloca frente a frente com suas origens

Por Alexandre Pilati.

 

Aproveitando as comemorações dos 50 anos de Brasília, foi lançado o quarto volume da Coleção Brasilienses. Desde 2004, a coleção tem apresentado à cidade o perfil de nomes expressivos da cultura da Capital Federal. O primeiro volume, intitulado Eu engoli Brasília, de autoria de Carlos Marcelo Carvalho, mostrou a obra e a vida do poeta Nicholas Behr. O segundo volume, lançado em 2006, com texto do jornalista Sérgio de Sá, conta a história de um dos principais nomes da música de raiz brasileira, o violeiro Roberto Corrêa. No terceiro volume, de 2008, foi a vez do fotógrafo e arquiteto carioca Luis Humberto, radicado em Brasília desde 1961. Todas essas personalidades estão entre as mais atuantes no meio cultural de Brasília e já fazem parte de nosso patrimônio histórico e artístico.

No quarto volume: o nosso “quarteto fantástico”

Os Criadores tem textos de Carlos Marcelo, Graça Ramos, Ligia Cademartori e Sérgio de Sá. Os autores escrevem sobre quatro importantes personagens da história de Brasília: Athos Bulcão, Burle Marx, Lucio Costa e Oscar Niemeyer. O livro conta ainda com um poético ensaio fotográfico de Ricardo Labastier e prefácio do cineasta Vladimir Carvalho. Diferentemente dos outros volumes da série, este número da coleção Brasilienses contempla personalidades que não estão mais vivas. A professora Lígia Cademartori se debruça sobre a obra do artista plástico Athos Bulcão e afirma que ela mostra o que há de mais exposto e mais secreto em Brasília. Segundo ela, a obra de Athos é como um espírito de Brasília, “está em toda parte e pode não ser vista” se o passante estiver desatento. Já Graça Ramos, que assina o texto sobre Burle Marx, acentua a preocupação do paisagista em equilibrar com o verde a aridez da capital planejada. Ela analisa o método de criação de Burle Marx e também a importância da presença dos seus jardins na cidade. O jornalista Sérgio de Sá, em seu texto sobre o arquiteto Oscar Niemeyer, aprofunda-se na complexidade do perfil do criador dos principais monumentos de Brasília, procurando mostrar as contradições do seu trabalho. Assim, o texto cria um efeito de distanciamento que não revela nem rejeição absoluta nem louvação irracional ao trabalho do arquiteto. Por fim, o jornalista Carlos Marcelo, no texto sobre Lucio Costa, mostra como as lembranças e vivências íntimas do urbanista acabaram se transformando em elementos fundamentais da ideologia urbana do Plano Piloto.

Declaração de amor e saudade

Este volume da Coleção Brasilienses, portanto, nem bem é lançado e já entra para a história das letras da capital. A partir dos perfis humanos de seus criadores, vai formando para o leitor uma Brasília de carne e osso, pensada por gente de verdade, mas que se transformou em uma cidade monumental, sob a marca do concreto. Não deixa de ser uma declaração de amor aos criadores de uma cidade que é tão desacreditada Brasil a fora, tomada como capital da corrupção e dos privilégios. É também um retrato da saudade de uma Brasília que, antes de ser real, era ainda um belo sonho na mente de seus criadores pioneiros.

Recuperar, verbo lento.

Verbos têm velocidade. Foi a conclusão a que chegou depois que fizeram três furos em sua barriga para que tubos com câmeras remendassem sei lá o quê nas fibras musculares. Arregalando os olhos para que não se fechassem ao peso dormente da inutilidade, foi além, fixando o canto do rodapé, onde as paredes da sala se encontram. Recuperar é verbo dos mais lentos, arrastado feito quem comeu feijoada e sobe ao sol ladeira de Ouro Preto. É carro modelo popular com cinco passageiros subindo a serra.

Amar é verbo rápido, ama-se muitas vezes a partir do primeiro olhar. Curto ou longo, dependendo se acaba depois do carnaval ou vai pela vida inteira. Matar é veloz se for por desatino, vagaroso por crueldade. Pensar também, é um gato desvairado pela noite fugindo do perigo, ou um paquiderme que transpõe metros em horas quando é sobre a vida para se tomar decisão.

Recuperar, entretanto, é moeda de apenas uma face, feudo instranferível da indolência. Quanto se leva para recuperar a fortuna perdida no jogo? A casa levada pela enchente? A confiança de quem decepcionamos? Ora, que filosofias baratas não sugerem a falta do que fazer! Ele só quer poder andar um pouco mais, uns passos a mais que sejam além do itinerário quarto-banheiro-sala-corredor, galgar uma vez que seja o mundo inantingível da esquina, o formidável universo da banca de jornal.

Mas recuperar é verbo que exige o dobro do limite que deram a sua paciência. E na quinquagésima vez em que hoje se deita na cama sempre morna de seu corpo, lembra que precisa pensar e decidir sobre a vida, mas que decidir também é, dependendo da situação, outro que a gente chama chama e não vem.

Rolar para cima